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A melancolia nos tempos da pandemia do COVID-19 – Por: Márcio Dantas

Nota do autor: O título desta crônica teve como inspiração o título do livro “O Amor nos Tempos do Cólera”, do escritor colombiano e Prêmio Nobel de Literatura em 1982 Gabriel Garcia Marques.

Um hospital não é supostamente um ambiente alegre, ainda mais em se tratando de um hospital que prioriza atendimento de alta complexidade. Todavia, sinto-me bem nesse que é meu local de trabalho, ainda que seja comum nos depararmos com situações tristes, desagradáveis, às vezes frustrantes. Mesmo assim, muitos pacientes saem satisfeitos com os resultados dos tratamentos, ou às vezes tão somente pela atenção e carinho com que foram tratados. É comum a equipe de saúde receber cartões de agradecimento ou homenagens dos pacientes, até mesmo dos familiares de pacientes falecidos como reconhecimento pela dedicação e empenho. Além disso, nos retornos ambulatoriais os pacientes interagem de forma afetuosa com a equipe. Os profissionais de saúde e funcionários de diversos setores também mantem entre si atitude respeitosa, cordial e solidária.

Infelizmente este ambiente está mudando. Já sabia que aconteceria, mas fiquei incomodado ao constatar já no meio da semana passada o hospital com cerca de 40% do seu movimento habitual, que se reduziu ainda mais nos dias subsequentes. O sentimento de apreensão era facilmente perceptível nos semblantes da maioria. Não ocorriam mais cumprimentos com aperto de mão, abraços, menos ainda beijinhos na face. O uso de máscaras faciais tornou-se muito mais comum. Isso por causa das medidas para atenuar o contágio do COVID-19. Para tentar impedir o colapso do atendimento, a administração solicitou a todas as especialidades a redução em 60 a 80% dos atendimentos de rotina, não urgentes. As internações estão limitadas ao mínimo essencial, preparando as áreas livres para internações em massa dos pacientes infectados, particularmente com leitos de terapia intensiva. Todos os setores passaram a treinar suas equipes para enfrentar esse enorme desafio e uma mudança brutal foi imposta à rotina do hospital. Apesar de apenas alguns casos terem aparecido até o momento, sabemos que haverá elevação exponencial até o pico. O receio é de haver aumento muito acima da capacidade do hospital e se instalar o caos.

Toda essa transformação associada a uma expectativa desagradável está interferindo no ânimo de todos. No filme “Eu sou a lenda”, o personagem Dr. Robert Neville (Will Smith) é virologista e um raro sobrevivente de uma mutação que transformou a quase totalidade da humanidade em primatas irracionais e agressivos, que não toleram a luz solar e, portanto, só saem de seus abrigos à noite. Já o Dr. Neville atua durante o dia e refugia-se escondido no seu laboratório à noite. É tensa a cena em que o Dr. Neville está muito amedrontado e encolhido no seu banheiro, acompanhado apenas da sua cadela Sam, enquanto ouve os barulhos crescentes das hordas de mutantes invadindo quase tudo. Na série “Game of Thrones” também são tensas as cenas em que é lembrado que a chegada do inverno está próxima (“the winter is coming”). Com as devidas proporções, uma expectativa angustiante têm nos invadido. Nesse cenário percebi-me melancólico.

“Melancolia” é o título de um filme do Lars Von Trier no qual um planeta homônimo está em rota de colisão com a Terra, que ocorrerá em poucos dias. A expectativa da destruição é explorada nas reações dos personagens. Não sou qualificado nem pretendo fazer explorações comportamentais e psicológicas do filme. Mas há a personagem deprimida porem conformada com a morte iminente, enquanto que sua irmã está em pânico. O seu marido é um astrônomo amador que acompanha o choque inevitável entre os planetas e, angustiado, dissimula para acalmá-la, enquanto os filhos são mantidos com omissão de informações. O sentimento geral é depressivo, até claustrofóbico apesar das muitas cenas em ambientes externos, pela inevitabilidade da morte nas horas seguintes. Com intensidades variáveis, reconhecemos essas reações de medo, negação, passividade, depressão, histeria ou fuga em muitas das pessoas com quem convivemos. Felizmente também há atitudes de solidariedade, coragem, participação, contribuição, doação e enfrentamento em muitas outras. Além dessa apreensão, o isolamento imposto à população também contribuirá sobremaneira para a sensação de melancolia. Aqui é oportuno fazer uma breve analogia entre as estratégias de sobrevivência das espécies. Quando uma manada é atacada por um predador, cada animal da periferia tenta atingir o centro desta porque ali é menor a chance de ele ser a presa. O mesmo vale para um cardume. É o instinto da sobrevivência. Quando a população em pânico passa a comprar excessivamente produtos para estocagem (álcool gel, alimentos, máscaras, luvas) causando desabastecimento, indiretamente é o mesmo comportamento de procurar o centro da manada. Paradoxalmente, no caso da pandemia que vivemos, nossa proteção será maior se nos isolarmos e reduzirmos o convívio com nossos semelhantes.

Estas experiências angustiantes vêm certamente interferindo na rotina, na vida e no sono de muitos, talvez causando sonhos intranquilos como os de Gregor Samsa (A Metamorfose; Franz Kafka). No meu caso, ao retornar do hospital no fim do dia, levei uma primeira lambada ao ser alertado pela minha esposa para parar após eu ter avançado dois passos no corredor, retornar e prosseguir desviando-me para um quarto logo à direita após o portão da entrada. Ali, num canto, fui instruído a tirar a roupa e sapatos, sair pela outra porta e ir direto para o banheiro adjacente. Minha toalha e chinelos já estavam na saída deste e, só após a chuveirada, pude entrar em casa. Regras novas. Desde então, tenho repetido esta rotina. Já me voluntariei a me mudar em definitivo para este quarto e fazer as refeições ali sem entrar na casa, como Samsa, metamorfoseado em algo semelhante a uma barata e, por isso, foi isolado no seu quarto. Levei outra lambada pela ironia ou meia verdade! Todavia, minha chance de eu já estar contaminado ou de contaminar-me num futuro próximo é enorme. Caso apresente sinais da infecção, minha mudança para o isolamento nesse quarto será consumada.

Obviamente não acredito na destruição iminente da humanidade por esta pandemia. No mundo biológico, a luta da vida contra a morte é contínua, mas não acho que já estejamos como o personagem Antonius Block (Max Von Sydow, falecido há poucos dias, com mais de 90 anos, de causa não relacionada ao COVID-19) desafiando a morte na fictícia, porém clássica partida de xadrez (Ingmar Bergman). Individualmente, a probabilidade de uma forma grave me acometer é pequena, mas admito ser real. Entretanto, para a humanidade, não será dessa vez que ela assistirá à remoção do sétimo selo.

Referência: Por: Márcio Dantas – Docente do Departamento de Clínica Médica da FMRP-USP