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Doença de Chagas – mais de 100 anos depois de sua cientificamente brilhante descoberta, há poucas razões para se comemorar

Por: J. Antonio Marin-Neto – Professor titular de Cardiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e diretor da Unidade de Cardiologia Intervencionista do Hospital das Clínicas da FMRP-USP

Constitui proeza científica singular na história da medicina a divulgação, em 1909, pelo médico brasileiro Carlos Chagas (1879-1934), de sua notável descoberta nos sertões de Minas Gerais. Descreveu ele, em detalhes clínicos, a fase aguda de nova entidade mórbida, causada por inédita espécie de parasito, o Trypanosoma cruzi, que isolara no sangue humano e no de outros mamíferos. E também identificou o ciclo fundamental de sua transmissão vetorial naquelas paragens, que incluía a peculiar participação de inseto hematófago abundante na região, o famigerado “chupança”, ou “barbeiro” (por preferir a face para picar), como era conhecido, entre outras sinonímias (Chagas, 1909).

NADA DE NOVO SOB O SOL? OU UM PASSADO INTANGÍVEL?

Como a corroborar a sabedoria proverbialmente derivada do milenar Eclesiastes (1), a recuperação de material genético do T. cruzi em múmia andina pré-colombiana atesta que essa parasitose já afetava o ser humano há pelo menos 9 mil anos (Aufderheide et al., 2004). 
Também é verossímil a possibilidade de ter Charles Darwin sido acometido pela tripanossomíase americana (2), em vista de sua realística descrição de ter sido picado pelo vetor hematófago e de período imediato de doença febril subsequente – quando passou pelo território sul-americano em 1835, durante a épica viagem do HMS Beagle, que levaria à monumental elaboração da teoria da seleção natural e da consequente origem das espécies – e também de sintomas gerais e gastrointestinais, contraídos em fases posteriores de sua vida (3).
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1 “[…] que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do Sol” (Eclesiastes 1:9).

2 Hipótese formulada, entre outros, por Clóvis Bühler Vieira, quando professor de Gastroenterologia da FMRP-USP, em 1965. 3 Embora o tema seja controverso, para breve revisão das evidências que subsidiariam esta hipótese, ver Bernstein (1984).

3 Embora o tema seja controverso, para breve revisão das evidências que subsidiariam esta hipótese, ver Bernstein (1984).
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Mais desconcertante é o ocorrido exatos dez anos antes da descoberta de Carlos Chagas, conforme relato documental recente por pesquisadores norte-americanos, que inclusive hipoteticamente reivindicam para aquele episódio a origem do termo kissing bug aplicável ao inseto hematófago (Garcia et al., 2015). De fato, eles constataram relatos múltiplos durante o ano de 1899, em diversos jornais de várias cidades nos EUA, de ocorrência repentina de ataques a centenas de humanos por kissing bugs. Embora se associasse a inúmeros sintomas, causando muitas hospitalizações e mesmo provocando alguns óbitos, aparentemente o surto microepidêmico assim desencadeado desvaneceu-se de forma tão inopinada quanto aquela como surgira. E mesmo ocasionando, em alguns locais do território norte-americano, verdadeira histeria coletiva, esse intrigantemente plausível capítulo da trajetória nosológica da doença de Chagas perdeu-se na incerta penumbra da história (4). 
Se me fosse concedida liberdade de parafrasear o genial escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, quando afirmava, em seu idiossincrático Viva o Povo Brasileiro, que o “problema da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”, eu diria que esse é também o problema da História, essa preciosa e incomparável ciência da intelectualidade humana. Porquanto é necessário remontar ao passado, mas sempre com base apenas em evidências elusivas (histórias) ligadas aos presumíveis fatos, que, contudo, não mais são passíveis de se testemunharem diretamente, como ocorrências propriamente ditas.
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4 Para detalhes da relação de notícias veiculadas nos jornais da época, ver Garcia et al. (2015).
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UM CENÁRIO EPIDEMIOLÓGICO EM CONSTANTE TRANSIÇÃO – AINDA UM PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA, ESPECIALMENTE NA AMÉRICA LATINA, MAS NÃO MAIS SOMENTE NELA

A doença de Chagas constitui a terceira entidade nosológica com maior expressão populacional de cunho global entre as moléstias infecciosas tropicais, após a malária e a esquistossomose. E, especificamente no hemisfério ocidental, representa a moléstia de maior sobrecarga médico-social entre as parasitoses humanas, como consequência direta de sua elevada morbimortalidade. Assim, é responsável por sete vezes mais anos de vida perdidos, ajustados para os inúmeros agravos incapacitantes de saúde sofridos antes da morte, em comparação com a malária (WHO, 2015). Por sua característica de antropozoonose, dispondo de amplo reservatório de animais infectados, além do ser humano – e de extensa gama de vetores –, é virtualmente impossível erradicá-la completamente. 
Ainda endêmica em praticamente todo o subcontinente latino-americano, é justificadamente classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como moléstia negligenciada (Marin-Neto et al., 2014). Também é reflexo natural direto das condições precárias de educação, saneamento, habitação e baixa renda econômica em que vivem os estimados 70 milhões ainda expostos ao risco de infecção pelo agente causal, o Trypanosoma cruzi. Este aspecto perverso de sua epidemiologia é ilustrado pelo eloquente contraste entre a expressiva redução do número estimado de pessoas atualmente infectadas – de 30 milhões em 1990 para cerca de 7 milhões em 2010 – e a escassa diminuição, de apenas 30%, quanto ao número de indivíduos ainda expostos ao risco de infecção – de 100 milhões em 1990 para cerca de 70 milhões em 2010 (Rassi Jr. et al., 2010). 
Esse grave cenário geral, por si bastante desalentador, tornou-se, em décadas recentes, ainda mais sombrio, em razão de sérios desdobramentos epidemiológicos. Desde 2006 havia-se testemunhado ganho inequívoco com o controle da transmissão da doença pelo principal vetor domiciliado até então no Brasil, o Triatoma infestans. Isso era fruto de mais de 20 anos de programa sistemático e centralizado de campanhas inseticidas ocasionadas pela iniciativa do Cone Sul. Entretanto, vive-se atualmente séria ameaça à sustentabilidade desse controle, em razão do enfraquecimento das ações descentralizadas de vigilância sanitária, que, em muitos locais do território nacional, passaram a um controle municipal claramente inadequado e insuficiente (5).
Há também o problema atual de inúmeros vetores – alguns já domiciliados e outros silvestres, mas com grande potencial de adaptação ao contato com o ser humano –, que são altamente infectados em território boliviano e que podem devassar as fronteiras brasileiras. E ainda se constata hoje nítido recrudescimento da transmissão vetorial da doença na região amazônica (Valente et al., 1998; Coura et al., 2002; Aguilar et al., 2007), onde o deflorestamento indiscriminado de vastas áreas geográficas ensejou o contato de seres humanos com novos insetos hematófagos infectados pelo T. cruzi, que se tornam rapidamente domiciliados nas pobres e precárias moradias. O professor Rodrigues Coura, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, muito apropriadamente rotulou a Amazônia como “a última fronteira da doença de Chagas”. Pois há ampla e munificente documentação, inclusive em 2015 e 2016, de numerosos surtos microepidêmicos de infecção aguda pelo T. cruzi especialmente no Pará, Ilha de Marajó, Acre, Amazonas e outros estados. Muito oportunamente, desde 2013 existe relato detalhado dessas ocorrências em várias localidades do Pará, elaborado pelas professoras da Universidade Federal do Pará Dilma S. M. de Souza e Maria Rita C. Monteiro, na forma de um manual de recomendações para o diagnóstico, tratamento e seguimento ambulatorial de portadores da doença de Chagas.
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5 Entrevista com José Rodrigues Coura, por Katia Machado, in Radis, Comunicação em Saúde, 81, maio de 2009, pp. 20-1.
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Essa nova inflexão epidemiológica assume requintes de crueldade sociológica, quando se considera que em anos recentes a transmissão da doença passou a ocorrer – talvez predominantemente – sob nova forma, pela ingestão de cargas volumosas de parasitos, quando alimentos – como os baseados em açaí, preparados sem condições higiênicas adequadas – se contaminam pela maceração conjunta de restos ou mesmo de insetos transmissores inteiros (Coura et al., 2006). Essa forma de transmissão oral da doença reveste-se de maior gravidade, porquanto a carga parasitária recebida é muito maior do que quando a contaminação se relaciona à picada do inseto, e também por ser a mucosa do trato digestório superior muito permeável ao parasito. Por conta desses fatores, em alguns surtos microepidêmicos a fase aguda da doença associou-se a não negligível taxa de mortalidade. Típica expressão da precária inclusão social vigente, essa forma de transmissão oral seria passível de controle mais efetivo, se medidas educacionais de incentivo a uma melhor higienização dos alimentos forem implementadas. 
Todavia, o mais conspícuo aspecto dessa atual fase de transição epidemiológica liga-se à emigração de milhões de latino-americanos, cronicamente infectados, para países mais afluentes economicamente (Schmunis, 2007). Dessa maneira, somente nos EUA estima-se a presença de pelo menos 300 mil portadores da doença de Chagas (Bern et al., 2007; 2009). O mesmo fenômeno se registra em quase todos os países europeus (Guerri-Guttenberg, 2008; Gascon et al., 2009; DiGirolamo et al., 2016) – com destaque para a Espanha, onde 60 a 80 milhões de infectados se estima ali viverem –, no Japão e na Austrália. Um efeito paradoxal bem-vindo desse alastramento dos indivíduos vitimados pela doença de Chagas reside em renovado interesse por suas proteiformes manifestações e na consequente demanda por soluções médicas e sociais. Assim, a Espanha e os Estados Unidos congregam atualmente vários centros de pesquisa em torno do problema. Isso tem potencial para eventualmente retirar a doença do rol das mais negligenciadas entre as de cunho tropical. Em contexto francamente desanimador, havendo até hoje somente dois agentes farmacológicos comprovadamente tripanossomicidas disponibilizados para uso clínico, já há cerca de 40 anos, são auspiciosas as iniciativas correntes testando fármacos novos e promissores – fosravuconazol, fexinidazol – em confronto com o clássico benznidazol ou a ele associados, conforme pesquisas em andamento sob patrocínio de programas em órgãos como o DNDi (Drugs for Neglected Diseases initiative), ligado à OMS (DNDi Chagas Disease Programme, 2017). Em aditamento, trabalhos recentes têm sido publicados sobre pesquisas já concluídas em humanos tratados com tripanossomicidas novos, infelizmente com resultados inferiores aos obtidos com o comparador fundamental, o benznidazol (Molina et al., 2014; Morillo et al., 2017). Embora tais estudos sejam ainda de alcance clínico bastante limitado, traduzem perspectivas encorajadoras no sentido de prover o campo das investigações sobre a doença de Chagas de iniciativas muito valiosas.

NÃO HÁ PADRÃO-OURO PARA COMPROVAÇÃO ETIOLÓGICA DA INFECÇÃO CRÔNICA PELO T. CRUZI. MAS… E QUANDO ESSA COMPROVAÇÃO SURPREENDENTEMENTE FALHA?

Em decorrência da escassa parasitemia, a comprovação do diagnóstico etiológico não se faz habitualmente por técnicas diretas de detecção do T. cruzi (intacto ou de seus componentes) em portadores da doença de Chagas em sua fase crônica. Em vez disso, diversos métodos diagnósticos são baseados na detecção de anticorpos circulantes contra o agente causal. Persiste alguma controvérsia quanto à relativa eficácia de cada um desses métodos, em termos de sensibilidade (a real capacidade de detectar, sendo o resultado positivo, todos os casos verdadeiros) e de especificidade (o especular poder do método em não gerar falsos resultados positivos quando a infecção não estiver presente). Essa multiplicidade de recursos acaba por desembocar na ausência de um método que seja unanimamente aceito como padrão-ouro, e enseja a desconfortável sensação espelhada ironicamente pelo aforismo popular: quando há muitos, não há nenhum…
A despeito da limitação apontada acima, de forma geral admite-se que os exames que empregam atualmente essas técnicas sorológicas sejam superiores, por exemplo, ao tradicional método baseado em fixação de complemento, de Guerrero e Machado, que tão relevante papel histórico desempenhou para o conhecimento da doença de Chagas. Em apoio direto a esse conceito pode-se aduzir a evidência do efetivo controle da transmissão por via transfusional, quando esses testes sorológicos passaram a ser compulsoriamente realizados em bancos de sangue, especialmente na esteira do controle da transmissão do HIV, a partir da década de 1980.
Entretanto, aspecto preocupante, de percepção recente e ainda obscuro é a falha em detectar com provas sorológicas a evidência da infecção crônica pelo T. cruzi em casos altamente suspeitos dessa condição. Isso tem sido verificado com frequência alarmante em indivíduos com antecedentes epidemiológicos francamente compatíveis com a possibilidade de terem sido infectados muitos anos antes, pois residiam em vivendas onde abundavam os insetos transmissores, às vezes tendo familiares com diagnóstico de doença de Chagas comprovado ou suspeito por morte súbita precoce. Mais significativamente, o exame clínico desses indivíduos indicava a presença de alterações cardíacas muito sugestivas desse diagnóstico, às vezes incluindo-se o virtualmente patognomônico aneurisma da ponta. Contudo, a prova sorológica da infecção pelo T. cruzi em vários desses casos mostrava-se consistentemente negativa.
Há poucos anos relatamos, durante congresso internacional, o encontro de algumas dezenas de casos sucessivos com essas características, a partir de amostra populacional de pacientes que nos foram encaminhados para realização de cateterismo cardíaco diagnóstico e coronariografia, entre 1o de julho de 2011 e 31 de dezembro de 2012, pois eram todos portadores de dor precordial suficientemente intensa e iterativa, para demandar a realização desses exames (Pavão et al., 2013). Caracteristicamente, não havia obstruções coronárias significativas, mas encontravam-se as típicas alterações de contratilidade ventricular regional, um sinal inequívoco ligado à etiologia da doença de Chagas. Estranhamente, de 65 pacientes, incluindo 28 em que o aneurisma de ponta foi detectado, apenas 11 (17%) tiveram a etiologia da infecção tripanossomótica confirmada por teste de imunofluorescência positiva para anticorpos contra o parasito. Em nossa instituição, esse tipo de situação também tem sido constatado pelo professor Ricardo Brandt de Oliveira, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) daUSP, que se dedica ao estudo de alterações de etiologia da doença de Chagas em órgãos do sistema digestório. O professor Brandt de Oliveira tem observado diversos pacientes, portadores de graus variáveis de esofagopatia e/ou colopatia, sem a correspondente comprovação de um teste sorológico positivo.
O contexto dessa dissociação diagnóstica entre as evidências clínicas da doença de Chagas e a negatividade da sorologia específica, que deveria corroborar o diagnóstico, é especialmente preocupante quando se considera que, de acordo com as normas vigentes, inclusive pela OMS, uma prova sorológica negativa seria suficiente para se descartar o diagnóstico etiológico, mesmo em indivíduos com alto grau de suspeição da doença. Sendo assim, esses indivíduos são habitualmente credenciados para doação sanguínea ou de órgãos sólidos e, com esses resultados falsamente negativos da sorologia, tornam-se potenciais transmissores da infecção pelo T. cruzi. Há cerca de dez anos relatamos o caso surpreendente de paciente receptora de um transplante hepático, realizado pela equipe do professor Orlando Castro e Silva da FMRP-USP, paciente esta que, dez meses depois, desenvolveu um quadro muito grave de fase aguda da doença de Chagas. A intensa miocardite, comprovada por biópsia do coração, que efetuamos como recurso derradeiro, com a paciente em estado tóxico-infeccioso grave, quase in extremis, para corroborar um diagnóstico que era considerado improvável, dado que tanto a paciente receptora como o doador do fígado haviam testado negativamente para a doença de Chagas, revelou a presença no tecido cardíaco de incontáveis parasitos em plena multiplicação tissular (Souza et al., 2008). Embora a infecção aguda fosse prontamente debelada por medicamento anti-T. cruzi, com recuperação clínica praticamente completa pouco tempo após, o coração, testado por exames de imagem, não teve restabelecimento total. Persistiu sequela que, provavelmente, viria a ter ligação com o óbito súbito da paciente, ocorrido já em fins de 2016, como me foi relatado pelo dr. Ajith Sankarankutty, da equipe responsável pelo seguimento tardio dos pacientes transplantados hepáticos. Informação adicional colhida em retrospecto referia que, tendo o mesmo doador hepático à nossa paciente sido fonte de dois rins para transplante, em um dos receptores desses órgãos também se verificou fase aguda da infecção tripanossomótica. Isso corrobora, ainda que de forma circunstancial, que o doador dos três órgãos transplantados era um portador de sorologia falsamente negativa para a doença de Chagas.
É oportuno salientar que pacientes recebendo transplante de orgãos infectados pelo T. cruzi, como a paciente descrita, são especialmente vulneráveis à instalação de fase aguda da doença de Chagas, pois, para se evitar a rejeição do órgão, são tratados com regimes terapêuticos imunossupressores, que facilitam a multiplicação do T. cruzi.
Não há ainda explicação concreta para esse tipo de hiato diagnóstico. É possível que ocorra simplesmente erro técnico na execução do exame sorológico – “kit reacional de má qualidade”, por exemplo –, mas essa prosaica explicação é improvável para muitos casos. Poderia estar a ocorrer inibição da reação detectora dos anticorpos dirigidos contra o agente etiológico, por substâncias presentes no sangue dos indivíduos testados? Na década de 1980, tornou-se popular o rumor envolvendo o chamado “pó de Catanduva”, que, se não me falha a memória, seria alegadamente dotado de propriedades negativadoras dos testes para detectar a doença de Chagas em humanos. Ou talvez se trate de real ausência ou paucidade relativa de anticorpos, possivelmente em decorrência de a infecção já ter sido de fato erradicada (pacientes tratados com tripanossomicidas em passado remoto?). Se essa última hipótese se mostrasse confiável, seria necessário admitir que ou a doença já havia progredido bastante antes de o agente etiológico ter sido erradicado ou, alternativa menos plausível, que as consequências clínicas pudessem se instalar mesmo na ausência do T. cruzi nos tecidos do organismo humano. Mas essa noção deve ser abordada em maior detalhe, em outro ponto ulterior neste texto, e também se indigita aqui a necessidade de aprofundarem-se pesquisas direcionadas ao esclarecimento desses aspectos ominosos da exteriorização da doença de Chagas.

AVANÇOS QUANTO À COMPREENSÃO E AO MANEJO CLÍNICO DE PORTADORES DA DOENÇA DE CHAGAS

Registrou-se progresso sensível nas útimas décadas, quanto à concepção e ao manejo clínico dos pacientes portadores da infecção crônica por T. cruzi, e cursando com as variadas formas e estágios evolutivos da doença de Chagas. Excepcional conquista foi a formulação do escore de Rassi para se estratificar o risco de sobrevir o óbito em portadores da cardiopatia da doença de Chagas, com base em características clínicas e laboratoriais simples (Rassi Jr. et al., 2006). De especial realce é também a compreensão atual de que àquele indivíduo com a chamada forma indeterminada da doença – sem sintomas ou sinais físicos da moléstia e com exames simples, como o eletrocardiograma e os radiológicos de esôfago e cólon, dentro da normalidade – deva ser dispensado apenas um acompanhamento sem qualquer estigmatização médica ou social. Afinal, diversos estudos de evolução espontânea a longo prazo evidenciaram que esses indivíduos têm expectativa de vida comparável à dos de mesma faixa etária, não infectados pelo T. cruzi. Portanto, enquanto permanecerem com a forma indeterminada requerem apenas seguimento anual ou mesmo bianual, repetindo-se o eletrocardiograma simples, mas não se devendo impor qualquer restrição para atividades físicas ou intelectuais, inclusive em profissões com responsabilidade social mais diferenciada, como condutores de veículos públicos ou pilotagem de aviões, por exemplo (Marin-Neto et al., 2010).
O acentuado sentido humanístico dessa mentalidade e conduta médica vem sendo preconizado há bastante tempo, entre outros, pelo professor Wilson Oliveira Jr., de Recife, e foi ratificada recentemente quando publicamos o Primeiro Consenso Latino-Americano para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia Chagásica e o Segundo Consenso sobre a Doença de Chagas, editados respectivamente por Andrade et al. e Dias et al.

A ETIOPATOGENIA DA CARDIOPATIA CRÔNICA DA DOENÇA DE CHAGAS: ESFINGE QUE CONTINUA A DEVORAR PORQUE AINDA NÃO A DECIFRAMOS POR COMPLETO

Em sua fase crônica, a cardiomiopatia constitui a mais frequente e mais grave das manifestações da doença de Chagas, sendo responsável por relevante morbimortalidade, especialmente em muitos países da América Latina. Sua patogênese continua a ser incompletamente compreendida, mas admite-se que pelo menos quatro mecanismos participem da gênese das extensas e intensas alterações cardíacas nessa forma da doença: os distúrbios do sistema nervoso autônomo e da microcirculação coronariana devem contribuir como mecanismos ancilares para o aparecimento da disfunção cardiovascular, mas são as alterações inflamatórias diretamente ligadas à persistência parasitária e as consequentes reações imunológicas adversas surperimpostas que são hoje consideradas essencialmente responsáveis pelas lesões da cardiomiopatia crônica (Marin-Neto et al., 2007).
A fisiopatologia relacionada às reações imunológicas na fase crônica da doença de Chagas é extremamente complexa e assume caráter de verdadeira “espada de dois gumes” quanto à gênese das lesões cardíacas (Rassi Jr. et al., 2017). Assim é que, inegavelmente, existem respostas protetoras do sistema imunológico do hospedeiro que contribuem para conter a multiplicação parasitária em níveis mínimos; isso é evidenciado pela constatação de que em condições que deprimem a atividade do sistema imunológico (e. g. quando há coinfecção pelo vírus causando a Aids ou na vigência de imunodepressão iatrogênica em indivíduos transplantados de órgãos) ocorre intensificação da parasitemia, do parasitismo tissular e das alterações inflamatórias a ele associadas. Em contraposição a esses efeitos protetores, acumularam-se evidências, tanto em modelos experimentais de infecção pelo T. cruzi como também na doença de Chagas humana, de que a inflamação miocárdica apresenta nítida feição de real agressão de base imunológica aos tecidos. Tais evidências são compatíveis com a possibilidade de que para a etiopatogênese da cardiopatia da doença de Chagas concorra um estado de desequilíbrio imunológico em que linhagens celulares pró-inflamatórias sejam preferentemente ativadas, em detrimento de linhagens celulares efetoras de mecanismos regulatórios que inibiriam a inflamação tissular (Dutra et al., 2008). Ainda nesse contexto, relatos recentes expõem a noção de que esse desequilíbrio imunológico possa ter sua base em polimorfismos genéticos do hospedeiro humano infectado pelo T. cruzi. (Cunha-Neto & Chevillard, 2014). De acordo com essa hipótese, aí poderia estar uma pista plausível para se desvendar o enigma de por que somente 30%-40% dos humanos infectados cronicamente desenvolvem a doença de Chagas propriamente dita (isto é, seriam geneticamente suscetíveis), enquanto os demais persistem por toda a vida com a forma indeterminada, isto é, sem manifestações clinicamente evidenciáveis (Rassi Jr. et al., 2017).
Já a teoria da persistência parasitária como o fator patogenético crucial para instalação e recrudescimento progressivo das lesões miocárdicas crônicas está apoiada firmemente em vários indícios: 1) contrariamente aos estudos que empregam técnicas histológicas convencionais, pesquisas em material humano de biópsias endomiocárdicas e de necrópsias com métodos imuno-histoquímicos ou baseados em PCR (Polymerase Chain Reaction) permitiram detectar material parasitário nitidamente associado aos infiltrados inflamatórios (Higuchi et al., 1993; Bellotti et al., 1996); 2) o material genético do T. cruzi pode ser consistentemente detectado no tecido miocárdico de indivíduos portadores da cardiomiopatia da doença de Chagas, mas não usualmente no daqueles sorologicamente positivos mas sem manifestações clínicas cardíacas (Jones et al., 1992); 3) em animais de experimentação a intensidade do parasitismo tissular correlaciona-se nitidamente com o recrudescimento das alterações inflamatórias causando morte celular (Zhang & Tarleton, 1999); também em modelos experimentais o tratamento com diversos agentes tripanossomicidas, mesmo sem erradicar o parasito, atenua as manifestações inflamatórias (Andrade et al., 1991; Garcia et al., 2005; Bahia et al., 2012).
E SE (ENQUANTO) NÃO SE COMPROVA IRRETORQUIVELMENTE A TEORIA DA PERSISTÊNCIA PARASITÁRIA COMO MECANISMO PATOGENÉTICO PRIMÁRIO E ESSENCIAL, COMO FICAM OS INDIVÍDUOS AFLIGIDOS PELA INFECÇÃO COM O T. CRUZI ?
Com embasamento nos indícios e evidências acima expostos, atualmente muitos pesquisadores convergem para um consenso tácito de que a persistência parasitária seja o fator-chave causador da miocardite crônica, de baixa intensidade mas virtualmente incessante, acarretando progressiva destruição do músculo cardíaco e sua substituição por tecido inerte, sem capacidade contrátil, de fibras colágenas. Esse conceito havia sido negligenciado por muito tempo em função de teorias patogenéticas como a neurogênica e a da autoimunidade da cardiomiopatia da doença de Chagas. Em essência, com esse consenso recuperou-se a noção de que não somente em sua fase aguda, mas também na fase crônica, a doença de Chagas e a cardiomiopatia por ela causada se comportam como real entidade infecciosa, em que o parasito não é efetiva e inteiramente debelado, apesar da proteiforme resposta imunológica defensiva do organismo humano, mas persiste incessantemente causando inflamação e reação imune adversa.
O corolário da teoria patogenética da persistência parasitária consiste na hipótese de que o tratamento tripanossomicida possa alterar, de forma benéfica, o curso da doença de Chagas em sua fase crônica. Em outros termos, que se pudesse, com esse tratamento etiológico, evitar ou ao menos minimizar a progressão das lesões miocárdicas. De fato, experiências pioneiras nesse campo de investigações davam alento a essa expectativa, porém de forma muito limitada, pelas diminutas amostras populacionais testadas, e, principalmente, pelo fato de os estudos serem quase sempre apenas observacionais, sem real capacidade de fornecer prova científica sobre o alcance do tratamento, mesmo congregados em meta-análises após revisões sistemáticas da literatura (Villar et al., 2002; Villar et al., 2014).
A partir de uma visita ao Brasil, em 2002, do professor Salim Yusuf, chefe do Departamento de Cardiologia da McMaster University, no Canadá, e um dos três cientistas mais citados em todos os tempos na área de cardiologia, por suas pesquisas de largo alcance em múltiplos contextos de tratamento de inúmeras afecções cardiovasculares (mas não de doença de Chagas), encetamos os trabalhos de montagem de um estudo multicêntrico, internacional, com real capacidade de prover resposta àquele desafio: em 3 mil indivíduos cronicamente infectados pelo T. cruzi e já portadores de cardiomiopatia da doença de Chagas, de forma duplo-mascarada (sem conhecimento pelo paciente e por seu médico responsável), os efeitos do tratamento com o melhor (longe de ideal, contudo) remédio tripanossomicida, o benznidazol, seriam cotejados com os do placebo (preparação desprovida de ação farmacológica efetiva). Para tal comparação o estudo deveria prosseguir por cerca de cinco anos, em média, de acompanhamento dos indivíduos arrolados, com rigorosa monitorização das eventuais complicações temíveis da doença, como a insuficiência cardíaca, a necessidade de se recorrer ao implante de marcapassos, ao transplante cardíaco e a própria morte. O protocolo do estudo, inicialmente elaborado pelo professor Anis Rassi e pelo dr. Anis Rassi Jr., embasado em seu estudo prévio de cerca de 420 pacientes seguidos por quase nove anos (Rassi Jr. et al., 2006), considerava a razoável possibilidade de se obter redução absoluta da ordem de 6% (redução relativa de 20%, a partir do estimado para o grupo-controle com 30% em cinco anos) na incidência daqueles desfechos graves, no grupo efetivamente tratado com benznidazol, em comparação ao grupo-controle recebendo apenas o placebo (Marin-Neto et al., 2008).
Esse estudo, mundialmente conhecido pelo acrônimo Benefit, teve o recrutamento iniciado com o primeiro paciente inserido em novembro de 2004, em nossa instituição, em que o investigador principal, dr. André Schmidt, foi responsável pelo arrolamento de 260 indivíduos com cardiopatia da doença de Chagas. O recrutamento desenvolveu-se penosamente e só terminou em novembro de 2011, envolvendo 49 centros de pesquisa em cinco países latino-americanos: 1.358 pacientes arrolados no Brasil, 559 na Argentina, 502 na Colômbia, 357 na Bolívia e 78 em El Salvador. Ao cabo de um período de seguimento médio de 4-5 anos os resultados não evidenciaram que o tratamento com o benznidazol reduzisse a incidência dos graves desfechos clínicos observados, comparativamente ao verificado no grupo-controle, tratado com placebo (Morillo et al., 2015).
Em face de tais resultados do estudo Benefit, uma primeira e óbvia conclusão é de que a hipótese essencial não se confirmou: ou seja, para pacientes já cardiopatas, com o perfil dos recrutados no estudo, o regime terapêutico empregado à base do melhor (embora não ideal) tripanossomicida clinicamente disponível não se mostrou benéfico e não se conseguiu evitar as mais graves consequências do processo patológico da doença de Chagas. Mas, então, significaria isso também que a teoria patogenética da persistência parasitária, postulada como mecanismo essencial para as lesões cardíacas nessa doença, deveria ser revogada? Seria tentador para alguns pesquisadores assim concluir, até pelo fato de que o tripanossomicida foi eficaz em reduzir a carga parasitária, pelo menos quanto à sua detecção no sangue circulante. Mas, certamente, a resposta àquela indagação deve ser negativa e a teoria não deve ser revogada. São múltiplas as razões a embasar esta convicta assertiva, que podem ser encontradas quando se considera o contexto amplo do estudo Benefit, suas limitações e características metodológicas, e seu alcance científico pleno.
Em primeiro lugar, o estudo pode ser perfeitamente válido e seus resultados neutros estarem a espelhar simples e fidedignamente que, nesse estágio de cardiopatia já estabelecida, o tratamento tripanossomicida não mais seria eficaz e as lesões miocárdicas presentes, sendo irreversíveis, já condicionariam os desfechos; portanto o remédio estaria chegando tardiamente. Se esta conclusão for verdadeira, por que não teríamos optado por realizar o estudo com indivíduos portadores da forma indeterminada da doença de Chagas, supostamente antes de as lesões cardíacas mais ominosas se estabelecerem? A objeção a essa alternativa de estudo é que ela simplesmente seria inexequível em uma doença com história natural tão longa, do ponto de vista logístico, pois seria necessário acompanhar por 3-5 décadas vários milhares de indivíduos com a forma indeterminada, para se poder averiguar o efeito do tratamento etiológico sobre as tardias manifestações e complicações da cardiopatia.
Em segundo lugar, diversas circunstâncias e condições inapropriadas que ocorreram durante o estudo podem ter contribuído para impedir que um eventual real benefício do tratamento tripanossomicida em nossos pacientes fosse detectado. Assim, o protocolo originalmente concebido foi alterado para estender-se a faixa etária amostral, o que pode ter “diluído” o número de desfechos causalmente atribuíveis à doença de Chagas entre os mais idosos. Em alguns países como a Argentina e a Bolívia a taxa de eventos em ambos os grupos situou-se em níveis alarmantemente baixos se comparada com a verificada, por exemplo, no Brasil; no conjunto geral dos países, a taxa de eventos observada no grupo-controle (recebendo placebo) foi inferior à divisada no protocolo original, e o estudo pode ter sido vitimado por carência de poder estatístico para detectar eventual diferença entre os grupos. Embora habitualmente o processo da randomização, aliado ao vultoso número amostral, assegure que os dois grupos de um estudo sejam adequadamente balanceados quanto às demais características influentes sobre o desfecho, surpreendentemente, no caso de nosso estudo Benefit, de seis características determinantes de mau prognóstico pelo escore de Rassi (Rassi Jr. et al., 2007), cinco eram mais frequentes no grupo tratado com o tripanossomicida do que no grupo testemunho, tratado com placebo. Mas, infelizmente, não se reportou qualquer ajuste para tais diferenças basilares (Morillo et al., 2015).
Em terceiro lugar, deve ser enfatizado que, embora a definição do desfecho composto primário englobando vários eventos adversos seja usualmente defensável, para doença de decurso tão protraído como a doença de Chagas, na qual vários deles podem se suceder, o método de análise baseado na ocorrência do primeiro evento pode ter sido inadequado para os propósitos do estudo. E, de fato, embora sem atingir-se a significância estatística, praticamente todos os componentes do desfecho composto tiveram sua incidência reduzida no grupo tratado ativamente, em comparação com o que se observou no grupo-controle (Morillo et al., 2015). Ademais, um evento adverso dos mais significativos clinicamente, a internação por insuficiência cardíaca, ocorreu menos no grupo tratado do que no controle, mas não foi incorporada ao desfecho composto primário do estudo (Rassi et al., 2017).
Finalmente, os resultados do estudo Benefit, como publicados em primeira instância, necessitam de mais criteriosa análise quanto à diversidade geográfica encontrada, em especial atentando-se para a possibilidade de variantes nos subtipos parasitários geneticamente determinados influírem na suscetibilidade do T. cruzi ao tratamento tripanossomicida com o benznidazol e, por conseguinte, também afetarem diferenciadamente os desfechos clínicos observados nos países participantes do estudo. Nesse sentido, no Brasil, onde o TcII é mais prevalente (Zingales et al., 2014), os resultados do estudo mostraram acentuada tendência a atingir-se a significância estatística (p = 0.06) para a redução relativa de 15% (4,4% em termos absolutos) no desfecho composto primário. Isto, embora não possa ser tomado como prova científica, permite levantar a hipótese de que para a população brasileira de indivíduos cronicamente infectados pelo T. cruzi, mesmo já cardiopatas, o tratamento etiológico ainda consiga conferir certo grau de benefício (Rassi et al., 2017).
Essa interpretação dos resultados do estudo Benefit obviamente é sujeita à crítica de constituir apenas análise de subgrupo, por isso induz somente à geração de hipótese a ser testada em estudo específico. Infelizmente, não há no momento perspectiva de que isso seja viável científica e economicamente. Portanto, cientistas e especialmente médicos que lidam com indivíduos cronicamente infectados pelo T. cruzi, no Brasil, estão hoje confrontados com o dilema: tratar ou não seus pacientes cardiopatas com o benznidazol? Haverá seguramente pesquisadores e médicos não propensos a adotar a conduta de tratar, com a justificativa de que, enquanto não se dispuser de mais evidência de benefício, será preferível não adotar um recurso terapêutico sem eficácia comprovada e não desprovido de efeitos colaterais sérios (ainda que o estudo Benefit tenha, como subproduto, demonstrado serem eles menos graves do que se supunha). Entretanto, para os pacientes brasileiros com cardiopatia em fases ainda não avançadas, acredito que seja plausível oferecer a opção de um tratamento tripanossomicida durando apenas 2-3 meses, na forma de uma decisão compartilhada (por médico e paciente). À luz dos presentes conhecimentos, não é possível condenar, seja quem adote a conduta, seja quem a rejeite. Há, tão somente, a chance de acerto versus o risco de erro de conduta, como é típico de situações em que não há ainda evidências conclusivas sobre a conduta terapêutica (lembrando que a ausência de prova, nessas circunstâncias, não é prova da inexistência de um benefício plausível). Assim, creio que, como expusemos anteriormente, o risco de cometer-se o erro beta (deixar de adotar conduta que futuramente se demonstre benéfica) é menos aceitável do que o risco do erro alfa (adotar conduta que no futuro se comprove ineficaz) (Marin-Neto et al., 2014). E, finalmente, conforme exposto em nossa publicação original do estudo, os presentes resultados não deverão desviar os pesquisadores envolvidos da missão de investigar novos agentes tripanossomicidas, com protocolos mais efetivos e menos sujeitos a efeitos colaterais indesejáveis (Morillo et al., 2015).

CARLOS CHAGAS – MARCADO PELA ANTEVISÃO DA TRAGÉDIA SOCIAL QUE DESCORTINOU?

Sabe-se que Carlos Chagas desapareceu precocemente por morte súbita aos 55 anos de idade, após período final de vida repassada de grande amargura, segundo depoimentos de familiares e amigos próximos. E é bem provável que essa amargura decorresse das vicissitudes ligadas à negação, por alguns médicos e acadêmicos contemporâneos, de aspectos da conquista científica que tão penosa e competentemente havia amealhado. Isso deve ter-lhe causado grande infortúnio, talvez o gatilho adicional para morte súbita em tabagista inveterado que era. Mas é também plausível que sua grande perspicácia humanística lhe tenha propiciado a antevisão do tragicamente real significado social da moléstia que revelara ao mundo, por afligir literalmente milhões de indivíduos desvalidos em vastas áreas do território brasileiro. Em acerbo contraste com a negativa de parte da comunidade acadêmica em aceitar a própria existência da entidade mórbida, possivelmente Carlos Chagas pressentisse o caráter de tragédia nacional que se desvendava a partir de sua descoberta, e que se desenrola em múltiplos atos e capítulos deploráveis socialmente até hoje.
Há alguns anos, em entrevista com o dr. Marcelo Queiroga, então presidente da Sociedade Brasileira de Hemodinânica e Cardiologia Intervencionista, tracei rápido paralelo entre os retratos fotográficos e psicológicos de Carlos Chagas e de Euclides da Cunha (6). Há alguns anos, em entrevista com o dr. Marcelo Queiroga, então presidente da Sociedade Brasileira de Hemodinânica e Cardiologia Intervencionista, tracei rápido paralelo entre os retratos fotográficos e psicológicos de Carlos Chagas e de Euclides da Cunha (7 – 8). Eu havia comentado essas semelhanças com várias pessoas e solicitado que me notificassem sobre qualquer documento de Carlos Chagas rindo ou aparentando alguma alegria. Finalmente, em 11 de março de 2010 o professor Anis Rassi enviou-me de Goiânia foto em que Chagas esboça meio sorriso (9), quase um esgar, escaneada a partir do ricamente ilustrado livro editado pelas historiadoras Simone P. Kropf e Aline L. de Lacerda, Carlos Chagas, um Cientista do Brasil. É oportuno assinalar que no mesmo ano de 1909, enquanto Carlos Chagas despontava para o mundo científico por sua brilhante descoberta, Euclides da Cunha, já reconhecido e famoso literariamente, era miseravelmente vitimado por outra tragédia de clássicos contornos gregos, assassinado por causa de drama familiar com desfecho que certamente lhe pareceu inevitável sem seu derradeiro e desatinado encontro com a morte. Há numerosos indícios de ter Euclides, como talvez Carlos Chagas, sido marcado para sempre pela visão presencial da apocalíptica tragédia de Canudos, da qual documentou os últimos e pungentes atos e que depois denunciou – em seu grande livro Os Sertões, narrado à guisa de verdadeira epopeia às avessas – como verdadeira loucura e crime de uma nacionalidade (10). 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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6 “Ciência e Humanismo, Ainda É Possível Conciliar?”, in Jornal da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista, ano XV (3), 2012, pp. 16-9.

7 Euclides da Cunha, fotografado em sua última residência, em Copacabana, em 1909, conforme aparece no livro de Roberto Ventura, Retrato Interrompido da vida de Euclides da Cunha, organizado por Mário Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana (São Paulo, Companhia das Letras, 2003).

8 Gravura de Carlos Chagas, publicada na Revista da Semana, em 15 de dezembro de 1923, conforme aparece na página 162 do livro Carlos Chagas, Um Cientista do Brasil, editado por Simone Petraglia Kropf e Aline Lopes de Lacerda (Rio de Janeiro, Fiocruz, 2009).

9 Carlos Chagas com um meio-sorriso, em março de 1929, durante recepção a grupo de cirurgiões norte-americanos, em Manguinhos, conforme aparece na página 200 do livro citado acima.

10 “É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades…” (Euclydes da Cunha. Os Sertões – Campanha de Canudos. 3a ed. corrigida. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1905, p. 614).
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Referência: Revista USP – São Paulo – n. 115 – outubro/novembro/dezembro 2017