Nossas vidas, nossas lutas, nossas histórias…

Há um mês, no dia do seu aniversário de 35 anos, o doutor Lucas Agra teve alta depois de passar 15 dias internado na mesma unidade em que cuidou e ainda cuida de tantas vidas.
Neste relato contundente e emocionante ele conta como foi enfrentar tão de perto e sem saber o que esperar, a doença que ele tanto combate. Ele fala do medo, da angustia, da gratidão, da esperança e da força que o conduziu a estar de volta à linha de frente. “Vou seguir até o fim, até isto acabar, para que possamos ser transformados e nos tornarmos diferentes de antes, melhores e promovendo a vida e compaixão acima de tudo”.
Confira:
“Hoje faz um mês que recebi alta da maior batalha que travei na vida – a de continuar vivo. Quando recebi o diagnóstico definitivo não tinha a menor ideia do que viria pela frente, só medo. Foi indescritível passar dias internados onde construí minha trajetória e meu caráter profissional. É inexplicável contar aos outros como foi enfrentar tão de perto aquilo que você combate, sem saber o que te esperava. Mas acima de tudo, é impossível entender todas as sensações experimentadas nas duas semanas internadas e nos dias seguintes àquele 17 de julho, meu aniversário de 35 anos.
Eu fiz o caminho inverso dos Bandeirantes – atravessei o rio Cuiabá, desci o Pantanal e parei em Ribeirão Preto. E desde o início dessa jornada, os percalços sociais dificultaram minha jornada, e tomado de assaltos de tempestades na travessia desse deserto foram frequentes. Nas vezes que parecia chover para refrescar, o calor e o solo árido dos dias duros anteriores secavam rapidamente a alegria passageira. Celebrar aqueles seis anos de rotina integral e abnegação eram o suspiro para enfrentar batalha maior que eu almejava: fazer residência na USP.
Internado onde sempre sonhei estar e com medo do viria pela frente lembrei de uma paciente especial que marcou minha vida. Lembrei do carinho com que ela sempre devotou a mim e do sorriso esperançoso, mesmo quando eu disse que ela tinha HIV. E depois quando eu disse que ela tinha tuberculose. E novamente quando contei que estava com “câncer”, ela chorou. Tentei confortá-la, cedi um abraço, disse que compraria uma peruca pra ela e que estaria a todo instante ao lado durante o tratamento. Coitada, não tolerou nem a primeira quimioterapia. Ficou tão debilitada que precisou ser internada, começou a perder a visão e ficar confusa. Um dia disseram que havia chamado meu nome, fui visitá-la. Aquela aparência esquálida, confusa e desorientada, mantinha o sorriso fixo no rosto. Me aproximei e perguntei: – “lembra de mim”? Respondeu não e virou pro lado, sem demonstrar muito interesse. Eu insisti! – “Olha, sou o seu médico. Doutor Lucas, não lembra”? Ela se virou, forçou as vistas, deu sorriso e mandou: – “Doutor Lucas? Não, não. Eu nunca o esqueceria. Ele é o amor da minha vida, e não é gordinho e nem tem este rosto redondo”. Dei risada, um pouco chateado pela constatação do meu peso a mais. Olhei uma foto sua colada na parede do quarto, e chorei sozinho. Portei todas as notícias tristes que recebera em vida. Conduzi-a de mãos dadas ao seu inferno. Ainda assim ela se manteve sorridente, e foi o exemplo para ignorar pequenas dificuldades que às vezes me desanima. Ela não parou de lutar enquanto pode, e sempre sorriu. E minha luta era tão pequena…
Quando temi pela minha própria vida, e mesmo longe das tragédias que já vivenciei do outro lado da mesa, fui tomado pela calmaria produzida pela Paz vinda dos céus. No dia 13 de julho, enquanto piorava e o ar me faltava. No dia que nem banho consegui tomar e via angústia nos olhos de todos que me avaliavam, lembrei o que eu tinha pra fazer da vida e que meu trabalho deveria ser uma oferta às mazelas do cotidiano. Lembrei que tinha prometido devotar minha profissão para trazer dignidade aos miseráveis. Quando achei que iria piorar mais, e com vontade de chorar e desistir, a canção que me trouxe paz com a certeza de estar nos braços de Quem sempre cuidou de mim, pude perceber que neste desastre mundial provocado pelo novo coronavírus, onde o homem demonstrou o que há de pior, subvertendo valores e subjugando a vida alheia na justificativa de que os lucros não podem parar de crescer – custe a vida que custar, reafirmei o compromisso de me entregar ao alívio da dor e a afirmação da verdade. Tinha que cuidar especialmente dos menos fortes e favorecidos, dessa doença que mata o preto e o pobre mais de 10 vezes que os mais abastados. Tinha que continuar explicando, orientando, tranquilizando, explicando novamente, desmentindo e tentando acolher a todos.
Quem vive meu dia sabe que luto do momento que acordo até a hora de dormir para o manifesto da ciência na condução da pandemia de COVID-19. Quem convive comigo sabe que não irei desistir mesmo recebendo as dezenas de ameaças que grupos ideológicos, políticos e religiosos enviam contra mim. Seguirei lutando por cada um que colocar a sua doença em minhas mãos. E por toda força, por todo o carinho, por todo amor e oração. Por cada um que ligou, mandou mensagem. Por cada um que se importou de verdade. Por cada presente, carta ou lanche. Por cada mãe que chorou junto com a minha quando cheguei em casa. Por cada momento de frio na barriga dos meus amigos da infecto do HC. Pela minha mãe, mulher, família e amigos. Por cada desconhecido que mandou mensagem quando venci a luta. Pela luta pela verdade e pela ciência. Pelo plano desenhado para minha vida por Deus. Por cada técnico de enfermagem, enfermeiro, fisioterapeuta, nutricionista… por todos os profissionais que cuidaram de mim. Pelos pacientes que estão indo pra casa aos nossos cuidados. E também por cada vítima dessa doença, especialmente àqueles que cuidei, que tentei salvar… vou seguir até o fim, até isto acabar, para que possamos ser transformados e nos tornarmos diferentes de antes, melhores e promovendo a vida e compaixão acima de tudo.
Vou estar sempre aqui, por vocês ”