Prof. Marin-Neto faz discurso emocionante na cerimônia de outorga de grau da 62ª Turma do curso de Medicina
Prof. Marin-Neto foi paraninfo da 62ª Turma do curso de Medicina da FMRP-USP.
“Quero saudar, primeiramente, os nossos queridos acadêmicos, Médicos recém-diplomados, e seus ilustres genitores, as senhoras mães e os senhores pais, suas avós e seus avôs, bem como suas companheiras e companheiros de qualquer qualificação e titulação, e demais parentes e amigos. Estou infringindo o protocolo, mas tudo vale a pena, quando a alma não é pequena, escudo-me em Fernando Pessoa. Saúdo, ainda, em especial, os professores mais felizes aqui presentes, que combinam o papel de mães ou pais, com o de mestres, Professores Júlio Moriguti e Leandra e Fernando Ramalho, com suas filhas Lívia e Fernanda Ramalho. E também a mãe e o pai da acadêmica Mariana Halah, Fernanda e Ricardo Halah, de outra geração de nossos ex-alunos diplomados por esta Escola de Medicina entre 1990 e 1994. Também tive essa felicidade, quando meu filho Guilherme graduou-se por esta Faculdade há exatos 20 anos, em 1998.
Nos últimos três dias tentei escrever um discurso, que talvez lhes envie para lerem em momento mais propício. Agora, por restrição de tempo, vou seguir o lema de que, quando o coração fala, dispensa-se o discurso, e eu lhes falarei, a todos, com o coração, direto ao coração de vocês, para dividir com todos algumas reflexões heterogêneas sobre este momento histórico em nossas vidas. Esta figura de reflexões heterogêneas era muito usada pelo Professor Hélio Lourenço de Oliveira, talvez o mais marcante entre tantos Professores dos quais tive o privilégio de receber influência direta durante minha formação.
Vocês, queridos afilhados, trajando indumentária talar, própria para solenidades desta envergadura, acabam de prestar o juramento de Hipócrates, personagem histórico real, e protótipo de Médico exemplar, de quem são sucessores concretos, através desse compromisso um pouco anacrônico e bizarro nos termos, porém sempre atual e edificante no sentido de seus ideais éticos.
Mas quero, nesta memorável noite, lembrar que, além dos fatos e história real, há outro arquétipo, este mitológico, Asclépio ou Esculápio, e suas filhas, Higeia, daí Higiene, para evitar doenças, e Panaceia, para curá-las a todas. Esse trio, Esculápio, Higeia e Panaceia, se tornou tão proficiente em sua arte de prevenir e curar doenças, que Hades, o mitológico deus dos mortos, viu sua clientela diminuir tanto – ninguém mais morria por doença – teve que intervir, e Esculápio foi imortalizado na constelação do Serpentário. Vocês agora passam a compor a nobre estirpe dos que perpetuam o imperecível anseio humano por curar, são os depositários desse sonho, ele sim, imorredouro, Mas o que seria de nós, humanos, sem os sonhos? Não foi isso que convencionamos, meu caro Fábio Villas-Boas, você que me saudou em 26 de outubro passado, em nome de toda a classe? Então, quando não mais puderem reverter o inexorável, materializem de outra forma o sonho e providenciem o lenitivo humano, da paz de espírito, para que o enfermo passe à eternidade com o coração reconfortado.
Na pessoa de nossa muito querida Diretora, a Profa Margaret de Castro, e de meu particular amigo, Professor Rui Ferriani, nas pessoas destes dois próceres máximos de nossa Instituição aqui presentes, saúdo as demais autoridades e todos os ilustres profissionais médicos e não-médicos ligados primariamente a nossa Academia, em todos os cargos e funções, e que são por eles liderados. Mas é em especial na pessoa de Benedito Carlos Maciel, meu mais dileto amigo entre tantos outros aqui presentes, companheiros que somos de tantas jornadas universitárias durante várias décadas, que eu saúdo toda a egrégia congregação de professores aqui homenageados, menciono apenas, de passagem, alguns, Sonir, Edwaldo, Miguel Hipólito, Valdes, mas homenageio a todos os que, como eu, representam muitos outros que não poderiam estar aqui por razões logísticas, e que mereceriam igual distinção. Benedito Maciel, professor exemplar de Cardiologia, pesquisador experiente e médico competente, fundador de escola de ecocardiografia respeitada nacional e internacionalmente, enfim, acadêmico completo, e administrador inigualável, personifica a excelência do setor mais complexo de nossa Instituição. Porquanto depois dos três profícuos anos de nosso ciclo básico, a esse setor incumbe o acabamento de formação médico-acadêmica, desde os três anos clínicos até as mais elevadas etapas de treinamento, em níveis de Residência, e Especialização. Em sua pessoa, também saúdo todos os Médicos Assistentes, Residentes, e demais participantes do grande complexo de serviços complementares, que conferem à nossa Instituição a estrutura portentosa de ensino, pesquisa e assistência médica que todos conhecem.
Tentei entender por que, entre tantos outros de mérito igual ou maior, fui eleito Paraninfo desta 62a Turma, e só identifiquei como razão indiscutível o sentimento singular da amizade que nos envolveu durante o curso. O Professor Ricardo Brandt, meu amigo desde 1965, quando iniciávamos nosso próprio curso, sugere que talvez mais do que minhas palavras, meu exemplo de Professor é que ficará gravado para muito longe, na memória futura de vocês. Como professor, ensinei-lhes bastante, sem dúvida. Para além da Cardiologia, propriamente dita, ensinei um pouco da ciência da incerteza e da arte da probabilidade, com o teorema de Bayes. Juntos analisamos dilemas e problemas cardiovasculares, e o sábio enfoque clínico holístico para muitas doenças e condições médicas.
Vocês agradeceram muito elegendo-me Paraninfo. Mas avaliem o quanto me dão em troca. Eu dei apenas o básico, de uma relação de ensino e aprendizado. Vocês são muitos, se potenciam pelo número; e o todo ficou imensamente maior do que a soma das partes. Vocêssuprem com gratas emoções, a tristeza de termos que trabalhar com a desgraça dos doentes. Compensam, com sua receptividade ao que ensino, as minhas frustrações e desventuras, por não poder resolver como pesquisador clínico tantas questões científicas relevantes; suavizam e atenuam minha limitação como Médico que nem sempre consegue impedir a morte em sua mesa de Hemodinâmica. Mas com vocês tenho sempre gratificação, pelo intenso retorno que vivencio. Jamais me esquecerei do que um de vocês, Ugo Aimoli, verbalizou sobre qual seria a razão para tanto estresse por ocasião do exame oral que aplicamos há décadas na Cardiologia: Ugo disse isto: O principal é que temos receio de decepcioná-lo, Professor”. Com essa revelação desvendava-se todo um contexto de sentimentos positivos recíprocos, e é sempre difícil conter a emoção que me assalta vendo o esforço de vocês para interpretar um ECG, e não me decepcionarem.
Como Professor, sempre estive envolvido no mister edificante de ensinar, e avaliar, esta parte a mais difícil, certo, Professor Valdes? Porém, antes de ser um Professor, sou um Médico, exatamente como vocês. E nisso estamos todos agora igualados, tenho imenso orgulho de tê-los finalmente como meus pares. Aqui vai uma pequena confidência a Vocês. No inverno de 1976, há 42 anos, durante um post-doc que fazia em Oxford, Inglaterra, fui visitado por Maciel e Júlio Voltarelli, de quem eu reverencio a memória em nome de todos os outros que já nos deixaram, e imprimiram marca indelével na formação dos graduados por esta Faculdade. Então, formulamos o pacto de que, como ensinávamos e pesquisávamos com doentes, para tentar compensá-los, de alguma forma, do seu infortúnio, que nos propiciava o material de trabalho, teríamos que ser não somente bons pesquisadores e professores, mas também os melhores médicos possíveis, e prover-lhes assistência perfeita, integral. A essência desse pacto com Maciel e Voltarelli viria a tornar-se a pedra angular de uma filosofia universitária que hoje vejo aplicada de forma quase universal em muitos setores de nossa escola de Medicina.
Então, o que comemoramos nós, neste momento? O que aqui se celebra não é propriamente a conquista do diploma de médicos, é a quintessência do que vocês são no processo grandioso de formação que hoje culmina nesta cerimônia a um tempo sagrada e cívica.
Conforme proverbial sabedoria popular, quem trabalha com a mão é artesão, com a mente é cientista, quem trabalha com o coração é um artista, mas quem consegue empregar bem as mãos, a mente, e o coração, esse é um Médico.
Vocês são esse produto acabado, verdadeira obra-prima de ciência e arte, que ficará, como uma sinfonia de Beethoven, ecoando para sempre nos corações de todos os envolvidos nesse processo formativo, e repercutirá, especialmente, sobre aqueles que vocês ajudarão em sua missão de médicos.
Quem vai ao mar, prepara-se em terra. Esse antigo adágio lusitano, emblemático das grandes proezas marítimas de nossos patrícios, aplica-se à preparação que tiveram no âmbito seguro de seus lares e de nossa Faculdade de Medicina da USP.
A existência do ser humano é composta de jornadas. A primeira jornada essencial preparatória da travessia que agora encetam e deve perdurar por toda a existência compreendeu o longo período de maturação física, intelectual e emocional, desde a infância até a adolescência, fase em que receberam apoio e inspiração de seus genitores, os primeiros e indispensáveis professores e mentores, eles que desempenharam a função primordial de lançar alicerces robustos para a sólida construção humana que lhes permitiu andar pelas veredas da infância, soerguer-se das primeiras quedas, vencer as procelas da adolescência, entenderam até quando lhes vieram os primeiros amores inseguros, e angustiantes.
A segunda jornada compreendeu período probatório mais intenso ainda, quando passaram pelo vestibular da escola médica mais gabaritada, sob muitos aspectos, deste País. Depois, mourejaram nos bancos departamentais e laboratórios dos longos três anos do ciclo básico, assimilaram complexos conhecimentos sobre a anatomia e o funcionamento normal dos órgãos, suas peculiaridades bioquímicas, farmacológicas, imunológicas, e também como seus detalhes estruturais e funcionais são alterados por incontáveis doenças e processos patológicos. Paulatinamente, por meio de vivências intensivas em enfermarias, ambulatórios, salas laboratoriais e cirúrgicas, em períodos normais mas também durante os fatigantes plantões noturnos, tornaram-se habilitados a diagnosticar, prognosticar e tratar os desditosos doentes. Amadureceram para alcançar o necessário equilíbrio emocional que os capacita a suportar os limites da atuação profissional. Com isso, tornaram-se Médicos, e já dominam bastante da essência de sua profissão. Em suma, vocês são competentes, e a competência de que são dotados é páreo direto para a competitividade que lhes será exigida no futuro. Essas duas palavras, se casam, se complementam. Por isso, já inscreverão nesta Escola da USP mais uma história superlativa de superação, com a nova etapa, de Residência e Especialização. Vocês são dotados desse dom efêmero mas portentoso enquanto dura, a juventude. Têm acima de tudo um coração jovem, pulsando com sonhos, na manhã radiosa de sua terceira década de vida, plena de luz e calor.
Mas haverá nessa trajetória futura períodos sombrios, intempéries, tempestades que tenderão a desestabilizá-los. Há circunstâncias com inerente potencial de lhes causar dissabores, frustrações, decepções, obstáculos a serem superados, grandes desafios a serem enfrentados.
Deverão contribuir com muito sacrifício para que o SUS, conquista inequívoca de nosso ordenamento social, se aperfeiçoe e concretize o princípio constitucional de saúde realmente ser o direito do cidadão além de um dever inafastável do estado nacional.
Terão que se contrapor à malévola multiplicação disseminada de escolas médicas, muitas ineptas, com efeitos que ainda repercutirão negativamente por muitos anos no cenário em que atuarão.
Parte considerável da mídia de informações está sempre à procura de causar impacto, sensacionalismo. Como saúde e doença são temas sempre muito sensíveis para a população, isso torna o Médico um alvo sempre visado pela mídia. Assim como na aviação, que não comporta erros, o Médico deve realizar diuturnamente atos perfeitos, irrepreensíveis, mas, humanamente, acabará por falhar. Há bastante de maravilhoso no que fazemos, mas usualmente é o nosso eventual erro que despertará a reação desproporcional. Não há como evitá-la, há que recomeçar sempre e, no limite do humano, minimizar o erro.
Outro desafio, vão vivenciar a Medicina muito atrelada ao desenvolvimento vertiginoso da tecnologia. Por isso, terão que se opor à atuação perniciosa de parte substancial da indústria de medicamentos, equipamentos e demais insumos. Deverão literalmente nadar contra a corrente. A indústria às vezes extrapola o limite de sua legítima busca de retorno a seus investimentos, e adota condutas inescrupulosas. Atua em nome de um princípio, em si, defensável, sadio, de lobby e marketing, como aprendi com minha filha Cynthia e meu genro Lucas Câmara, profissionais nessa área, mas em contextos fora da Medicina. Contudo, o marketing, em Medicina, com frequência torna-se perverso, resvala para narrativas falsas, as famigeradas fake news, para seduzir os próprios Médicos e a população em nome de conceitos de pós-verdade. Marketing é marketing, ciência é ciência, Medicina é Medicina. E desse desvirtuamento de fins e meios caberá a Vcs protegerem seus pacientes. O bastão de Esculápio é fácil de se confundir com o caduceu de Mercúrio, patrono do comércio. Ambos os símbolos têm um bastão em que se enrolam serpentes, mas a de Mercúrio é apenas venenosa, enquanto a nossa, de Esculápio, tem propriedades medicinais, e eu reverencio a memória do grande pesquisador de Farmacologia de nossa Faculdade, Sérgio Ferreira, quem extraiu da jararaca o que viria a ser o protótipo do captopril, que todos vocês conhecem bem da Cardiologia atual.
Eu ensinei-lhes o paradigma da Medicina Embasada em Evidências, mas há que exercitar primordialmente o bom-senso, visar à sabedoria, mais que o próprio conhecimento, para não incorrer no vício em atribuir tudo a única causa; é necessário corrigir essa rota equivocada, rejeitar os dogmatismos, e aceitar o relativismo de muitas circunstâncias. Como o cosmos, e a vida, a Medicina também é quase sempre multifatorial e o método científico, eficaz como instrumento, pode falhar. A verdade absoluta praticamente não existe, em geral encontra-se a meio caminho entre duas hipóteses muito diametralmente opostas.
Como vaticinado para diversas profissões, também a Medicina tenderá a ser praticada por sistemas automatizados de anamnese, exames laboratoriais e mesmo tratamentos robotizados. Entretanto, nunca haverá algoritmo ou sistema automatizado que substitua o que Vocês serão capazes de fazer, isto é, prodigalizar atenção, carinho, solidariedade humana. Eu já os vi em ação, nesses anos passados. Vocês tornaram-se capazes de focar de maneira holística o doente, não apenas o órgão ou aparelho vitimado. E assim, prover empatia, calor humano, influência positiva. Conheci excelentes exemplos de ótimos profissionais nesse sentido, minha própria esposa Johana Lilian foi assim enquanto teve saúde. Olhem sempre olho no olho seus pacientes, e nunca deixem de lhes falar com a compassividade que merecem. O doente demanda carinho, acolhimento, tanto quanto soluções profissionais técnicas.
Sobretudo, não esmoreçam nunca na busca incessante do certo, do justo, do apropriado para seus pacientes, mesmo quando se sentirem oprimidos por infortúnios, esmagados por incompreensões, deprimidos por percalços e injustiças, com dificuldade para encontrar a luz ao final de um túnel escuro. Eu lhes recordo este princípio de sabedoria oriental que poderá sempre norteá-los: lembrem-se de que a uva e a cana de açúcar necessitam ser esmagadas, para se produzir o vinho e a cachaça inebriante, a pérola natural constitui-se na profundeza dos oceanos pela ostra reativa a uma agressão, o diamante, a mais famosa das pedras preciosas, formou-se na profundeza terrestre sob condições elevadíssimas, de pressão, e a semente germina para liberar a vida, na escuridão.
Para finalizar, vejo que do extenso leque de opções que vocês têm para exercer a Medicina, em cada campo de diferenciação haverá oportunidades de superação, bem ao seu feitio, mas, por absoluta carência de tempo, vou destacar apenas três áreas de atuação, com o Obstetra, o Geriatra, e o Cardiologista.
Começo pelo Ginecologista-Obstetra, epitomizado aqui pelos perfis magistrais dos Professores Rui Ferriani, Geraldo Duarte e Silvana Quintana. O Obstetra atua justo quando a mulher, o ser supremo da natureza, torna-se mais sublime ainda, como aconteceu com as mães de todos vocês. São elas que eu quero homenagear neste momento. Elas foram sublimes ao dar à luz os seres que vocês são, mas esse momento mágico é traumático para quem nasce. Por isso que quase sempre se nasce chorando, e a razão desse pranto, na definição poética e inspirada de Leandro Karnal, é que naquele momento nos despedimos de uma mulher, não uma qualquer, mas a nossa mãe. Despedimo-nos de sua quente e úmida cavidade uterina, e ouso dizer que percebemos de imediato essa perda porque, nesse momento crucial, paramos, de súbito, irremediavelmente, de ouvir a primeira música que nos embalou toda a gestação, aquele compasso rítmico do coração materno, que o feto ouviu o tempo todo. Pois vocês sabem, o feto já escuta e o coração materno fala o tempo todo, com sua voz grave, rouca, pouco melodiosa é verdade, mas reconfortante, reasseguradora. Compete ao Obstetra minimizar o trauma e os riscos desse momento crítico de separação, quando somos desalojados desse útero materno, para sempre. Depois, nós, homens, recuperaremos algo dessa relação com o útero, quando nos unirmos à mulher amada e nela instalarmos nossa própria semente vital, ventura essa que foi negada a Beethoven. Mas não o impediu, ou, talvez por isso mesmo, possibilitou-lhe legar à Humanidade a exaltação redentora da alegria com a Sétima e Nona Sinfonias e especialmente o irreprimível, o inextinguível arrebatamento da Appassionata. E para as mulheres, o resgate da relação perdida com o útero materno ocorrerá quando agasalharem em seu próprio corpo outro prodígio existencial, de uma nova vida concebida com amor.
Quero, a seguir, homenagear seus pais, eles que humildemente contribuíram com apenas metade de seu material genético, e, mais do que isso, deram o indispensável suporte para estabilizar e sedimentar o núcleo familiar responsável pela trajetória pregressa de vocês todos. Dessa atuação resultou a plataforma sólida que lhes delineou o caráter, sua estrutura mental e física, que os tornou aptos a seguir esta carreira de Médicos, a um tempo penosa e maravilhosa. Mas agora, passando de um extremo a outro da vida, quando esses pais enveredarem pelo outono e pelo inverno da existência, vão se beneficiar muito de um Geriatra capacitado, este que tornou-se o depositário de tantas esperanças de um envelhecimento digno, capaz de potenciar a chance de esses pais se tornarem os avôs queridos da prole vindoura de suas filhas e filhos.
E, por último, talvez eu tenha a felicidade de ainda ver alguns de vocês trilhando as sendas difíceis da Cardiologia. Porque de coração vocês também já entendem bastante. Há tempos eu discutia com meu amigo de infância, o então Reitor Marco Zago, e o nosso maestro Rubens Ricciardi, a etimologia de aluno, o sem luz. Mas vocês agora não mais são alunos, já brilham intensamente, com luz própria. Sabem que o coração, anatomicamente um órgão disforme, feião, como diria minha filha Cynthia, na fisiologia esse Quasímodo revela-se um prodígio funcional, capaz de incansavelmente bater, por trilhões de vezes, até o último suspiro. Mas devem reconhecer que é no simbolismo que ele é singular, assume o papel do cérebro, torna-se o comando existencial, constitui o sopro vital e o sentido da vida, transcende a própria razão. Porque o coração tem razões que a própria razão desconhece, o que percebi sempre que tentei entender um coração feminino.
E assim, se ainda houver tempo, quem sabe, algum dia um de vocês poderá cuidar de um coração como o meu. Um coração já alquebrado de Cardiologista, que ao longo de quase 50 anos realizou muitos milhares de procedimentos em tantos outros corações.
Quero me despedir com o tema recorrente que mais nos une a todos, neste momento, o da amizade. O sábio perguntado sobre o que destruiria a amizade, se a distância, o tempo ou a eternidade, respondeu, mais como poeta do que como filósofo: nenhum deles, pois a amizade cresce no tempo, vive na distância, e permanece na Eternidade. Essa amizade que nos une, e que me fez sentir tantas emoções, que perdure para sempre em nossa memória.
Sejam abençoados e felizes, até quanto o permitir nossa existência sofrida, mas acalentada pelo senso de justiça, pela esperança sempre renovada do dever cumprido, pela amizade, nessa trajetória luminosa de que eu tive a honra e o imenso prazer de participar.
Minha gratidão, meu reconhecimento por tudo que me permitiram vivenciar, que fiquem reverberando em nossos espíritos para sempre.”
Por: J. Antonio Marin-Neto – Docente da FMRP-USP – Paraninfo da 62ª Turma do curso de Medicina