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Contribuições científicas da FMRP-USP: Prof. Dr. Dalmo de Souza Amorim


Contribuição à pesquisa da FMRP
Um olhar pessoal sobre a contribuição à pesquisa da FMRP[i]
Dalmo de Souza Amorim[ii]
Este texto dá sequência à Conferência Contribuição à Pesquisa da FMRP, por mim proferida, como parte dos eventos comemorativos do sexagésimo aniversário de nossa instituição. Essas conferências integram um conjunto de atos formais então organizados na linha daqueles celebrados quando do quadragésimo e quinquagésimo aniversários. Mas os atuais não só inovam em métodos e tópicos como adicionam subsídios à nossa memória histórica, tão carente de dados para a memória documental.
Ao meu sentir – na linha do acima referido – as fases da história não podem ser arbitrariamente fixadas a partir de um ou outros (ou muitos) personagens, capazes de realçar ou subestimar a sua contribuição. Elas – as fases – devem ser examinadas à luz de seus desdobramentos, quase sempre impregnadas de conteúdos ideológicos, entendidos como maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou grupo de pessoas.
Esse conceito – ideologia – atrela e traz implícita a admissibilidade de uma única fonte e um único princípio. Por isso, prefiro o uso de outro conceito: o de modelo que é a interpretação de uma realidade. O que representa dizer que o intérprete pode ter visão diferente mais tarde; também pode ser que a realidade mude. Esse conceito traz subentendida a predição – que o tempo poderá confirmar ou não, de determinadas funções e objetivos, isto é, o surgimento de distorções e disfunções. Mas, em seus pressupostos, ele – o modelo como tal – não admite concessões.
O que isso tem a ver com o nosso assunto?
Tem tudo a ver, pois a pesquisa, aqui, objeto de exame preferencial, adquire – como atividade-fim na universidade – papel de relevância a merecer diversas conferências nessa efeméride. Mas se ela – a pesquisa – alcança tal status de relevância é por estar atrelada a determinado modelo.
Pergunta-se: segue a nossa escola algum modelo? Sim, a resposta é inequívoca. Como dito acima, a história dever ser examinada à luz de seus desdobramentos, embasados em um ideal, sem o que não se pavimenta o caminho desejado. Por essa razão, farei exame passageiro daqueles aspectos que a meu ver são dignos de registro nesse evento.
1. Pródromos
A nossa faculdade tem lastro em um modelo exógeno. Aos interessados no assunto recomendo a leitura da obra História da Universidade de São Paulo, publicada em 1954, de autoria de Ernesto de Souza Campos[1]. O autor remete o leitor ao Memorando elaborado em 1924, entre a Faculdade de Medicina de São Paulo e a Rockfeller Foundation, que assegurou os recursos financeiros daquela fundação a essa escola de medicina, desde que atendidas determinadas exigências. O autor daquela obra transcreve os fundamentos citados pela Comissão de Estudos e Regimentos daquela escola médica para o acolhimento do apoio financeiro “…limitação no número de alunos, regime de tempo integral para as cadeiras de laboratórios, construção de edifícios e do hospital”, de acordo com as diretrizes traçadas pelo Diretor Médico daquela fundação. Quem era o Diretor? Abraham Flexner[2], o propugnador da reforma do ensino médico em seu país.
2. Dos alvores da nova escola médica
A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto é modelo flexneriano, portanto, não endógeno. Ela foi criada impregnada dos preceitos básicos no já citado Memorando, de 1924, sem o que o modelo – que não admite concessões – poderia tornar-se apenas estágio conceitual, diante de eventual fraqueza dos pressupostos, aí considerado o nosso hibridismo cultural e os nossos costumes.
Aqui cabe destacar que os princípios de organização da nova (nossa) escola médica estendiam a obrigatoriedade do regime de trabalho em tempo integral aos professores de ciências clínicas. Repetindo o acima dito, modelo não admite concessões, sob o risco de passar a ser apenas uma referência intelectual. O que diferencia uma coisa da outra? É a aceitação coletiva das normas a todos aplicáveis, sem inibir o indispensável grau de academic freedom, nelas implícitas. Seria imaginável pensar que – mercê de nossas tradições – algumas dessas diretrizes não encontrariam guarida. Seria concebível também que, por conveniências pessoais, muitos não as acatassem e voluntariamente da nova instituição se afastassem. Foi o que ocorreu, quando da instalação da nova escola médica, e que, ao longo do tempo, dela se afastassem.
3. Dos atos normativos e da instalação
Conforme dito acima, a ausência de memória documental com frequência gera “histórias orais” que tramitam de uns para outros, entre gerações, com distorções, propiciando o surgimento de figuras míticas. Para os propósitos deste texto, sugiro a leitura de dois livros: um, o retrorreferido História da Universidade de São Paulo, de Ernesto de Souza Campos1; o outro, de autoria de José Eduardo Marques Mauro e Arlindo Rocha Nogueira, sob o título FMRP-USP, Primeiros tempos, através dos documentos e pela voz de seus construtores[3].
Já registrei acima o afamado Memorando celebrado entre a escola médica de São Paulo e a Fundação Rockfeller com recomendações com vistas à implantação de modelo flexneriano. Cerca de um quarto de século depois ocorre a expedição de atos normativos com vistas à instalação de nossa Faculdade, a saber: a Lei nº161, de 24 de setembro de 1948, que dispõe sobre a criação de estabelecimento de ensino superior, em cidades do interior do Estado, e dá outras providências; o Processo nº3320, discutido pelo Conselho Universitário da USP, em 6 de setembro de 1951, referente à instalação da FMRP; a transferência, para a Universidade de São Paulo, de todos os edifícios, terreno, bens móveis e imóveis onde se achava instalada a Escola de Agricultura de Ribeirão Preto, a fim de nela instalar a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto; a posse de Zeferino Vaz no cargo de Diretor da nova escola médicaem Ribeirão Preto; em 18 de março de1952, a aprovação do contrato de d.Glete de Alcântara, para dirigir a Escola de Enfermagem, a essa escola médica; em 18-11-52, a aprovação dos nomes dos professores a serem contratados para o Curso Fundamental desse Instituto Universitário; a primeira aula oficial realizada em 17 de maio daquele ano.
4. Da organização do corpo docente
Há que lembrar que àquela década de1950, aorganização universitária em nosso país estava centrada no regime de cátedra, absolutista e infensa em seus privilégios. Convém ter presente a diferença entre autoridade e poder. Esse último não pergunta, determina.
Também há que se destacar a obrigatoriedade do regime de trabalho – em tempo integral – dos docentes de laboratórios, desde antes da década de 1930 (a USP foi fundada em 1934), utilizando então, na nova escola médica que aqui surgia, os mesmos expedientes para a formação do seu corpo docente3 estendido de maneira obrigatória às cadeiras clínicas. Entendeu-se que a organização do elenco docente para ser bem-sucedida – até mesmo em compatibilidade com o regime de trabalho adotado – teria de recorrer à competência onde ela estivesse.
A composição do elenco docente – nessas condições de exigência de elevada qualidade e regime de trabalho – era essencial para a operacionalização do modelo. É da lavra da Comissão de Ensino e Regimentos1o conceito do profissional da cátedra, isto é, dos professores que fazem do ensino a finalidade primordial de sua vida e não apenas uma atividade acidental entre outras do exercício da profissão”.
Atender essas exigências requeria a “busca” de ativos, sobretudo em ciências básicas, talvez facilitadas pela ruína do pós-guerra em países europeus. Dentre os estrangeiros, cabe citar as contratações de Lucién Lison, Paul Lagel, Gerhard Werner e Fritz Köberle. Todavia, alguns professores aqui não se ambientaram3. Dentre brasileiros, foram contratados Moura Gonçalves, Mauro Pereira Barreto e José de Almeida, além de outros.
Em ciências clínicas, cabe referir a manifestação da Comissão de Ensino e Regimentos da USP “…é possível instalá-la (a FMRP) graças ao fato de a Faculdade de Medicina de São Paulo, desde logo, dispor de 138 docentes-livres de alto valor”1. Por razões pessoais, destaco a pessoa de Hélio Lourenço de Oliveira que, na década de 1940, estudara nos Estados Unidos: em meu entendimento, esse professor sofreu as influências de grandes educadores norte-americanos da época tais como John Dewey, Lewellys Barker, na esteira das mudanças propugnadas por Abraham Flexner[4].
5. Da organização do ensino superior
Há que lembrar como dito acima que, àquela época – década de 1950 -, a organização universitária estava centrada no regime de cátedra, os chefes – catedráticos – infensos em seus privilégios vitalícios. Insisto que há diferença entre autoridade e poder. Esse último não pergunta, determina. As cátedras – assim como a diretoria da instituição – funcionavam sem colegiados.
Com a Reforma Educacional[5] – centrada na preservação das tradições universitárias, mas que não devem ser subservientes ao mercado – após um período de transição, instala-se a chamada racionalidade do planejamento e ação – estabelecendo um novo modelo, englobando o ensino, a pesquisa e a chamada extensão. Aos interessados recomendo o célebre depoimento de Anísio Teixeira, no Congresso Nacional, quando da discussão da reforma universitária[6].
Assim se fez. Foram abolidas as cátedras, criados os departamentos e institucionalizada a pesquisa. “O Departamento será a menor fração da estrutura universitária para todos os efeitos de organização administrativa, didático-científica e de distribuição de pessoal e compreenderá disciplinas afins5. Enquanto o Departamento sentia o impacto dessas mudanças de ordem estrutural – a extinção da cátedra, estabelecida pela reforma universitária – internamente a ele ocorria um cisma profundo com reflexos graves na sua funcionalidade: a setorialização em especialidades. Aflorava o início de uma discussão entre departamento – conceito administrativo – e disciplina – uma referência intelectual[7], até hoje não só não solucionado, mas agravado.
Assim teve início essa clivagem, repito, com consequências até os nossos dias. Criados os departamentos, às vezes de maneira forçada, outras vezes mais por razões administrativas do que por racionalidade acadêmica, surge a democratização deles com a sua fragmentação em disciplinas: dessa forma, usualmente mais por voluntarismos docentes do que por necessidades pedagógicas e técnicas, transformando-se o departamento em um arquipélago de unidades semiautônomas, alojadas elas (as referências intelectuais) em um conceito administrativo (o departamento).
6. Da pós-graduação stricto sensu
Subsequente à Lei nº5540, acima citada, que disciplinava a reforma da educação superior, o Parecer 977[8], da lavra do Conselheiro Newton Sucupira, dá ao tópico – pós-graduação stricto sensu – a clareza, a consistência e as condições básicas para o seu desenvolvimento. Essa situação era até então desconhecida no meio acadêmico brasileiro.
Aqui temos outro exemplo de modelo. Aquele Conselheiro usa exemplo de sua própria vivência para discorrer sobre os requisitos necessários à obtenção dos títulos acadêmicos, Master e Ph.D., na universidade norte-americana por ele cursada. A despeito de inexistente na vida acadêmica nacional, de modo formal, as exigências básicas, por ele apontadas, encontraram abrigo na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. As razões estão no histórico de formação e de exigências até então adotadas por essa instituição, desde o início de suas atividades. Esse entendimento não deve exigir muito esforço. A interpretação dessa situação sui generis, no meio acadêmico nacional, é explicada pelo fato de que os dois níveis – graduação e pós-graduação stricto sensu – têm origem em um mesmo modelo pedagógico e ideológico, cuja matriz é o desenvolvimento da universidade fundamentado na pesquisa2.
Ao filósofo Newton Sucupira contrapõe-se, no entanto, o professor médico Rubens Maciel, relator do Parecer 576/70, que dá destaque às peculiaridades da área médica. Para o ilustre Conselheiro Rubens Maciel, a prestação de serviços médicos, em tempo integral, em hospital universitário credenciado, sob a forma de curso, configura modelo de pós-graduação. No entendimento daquele ilustre relator, não havia antagonismo, antes superpossibilidade, entre a assistência médica e os níveis de mestrado e doutorado. Essa proposição claramente conflitava com os ideais aqui – FMRP – perfilhados.
Essa situação conflituosa de interpretação só foi dirimida com a edição do Ofício GR 1212, de 25 de junho de 1970, que interpretou como ex post facto aquele parecer. O ofício em questão, emitido pela Comissão Central de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo, passou a disciplinar e cuidar da pós-graduação stricto sensuem nossa Unidade.
Foi nesse ambiente de ignorância – por inexistência anterior desse regime de estudos – e desacordos conceituais endógenos – que a Comissão local de pós-graduação stricto sensu iniciou os seus trabalhos. É de bom alvitre lembrar que os integrantes dessa Comissão tinham vivências acadêmicas no exterior, inclusive nos Estados Unidos, como pesquisadores científicos, nada obstante não haverem participado da organização e condução de estudos dessa natureza.
Pode a pós-graduação stricto sensu ser oferecida sob a forma conceitual de cursos? A resposta é não, apesar de por razões administrativas à época figurarem (os programas) como tal. As discrepâncias tinham origem no então iniciante regime de departamentos (substitutos do ancien régime de cátedra). Postulavam eles – os departamentos – organizar os seus programas com base em disciplinas (i.e., em especialidades) em oposição ao preceito fundamental de modelo em áreas de concentração multi e interdisciplinares[9],[10].
Não será exagero dizer que, à época, foi uma epopeia. Muitos chefes de disciplina, aí incluídos alguns da Clínica Médica, entendiam que a organização deveria ter como lastro elas – as disciplinas. Dito de modo direto: – o enfoque dos programas deveria ser profissional e especializado (mercê de interpretação derivada da reforma universitária). Mas a Clínica Médica adotou posição firme e oposta e pode ser dito que, há quase meio século, ela defendia – como Área – os seus programas de estudo na pós-graduação stricto sensu. Os programas então foram organizados em núcleos multidisciplinares na fase comum de estudos fundamentais na Área, sem prejuízo das investigações conducentes ao título serem conduzidas no âmbito das disciplinas.
A Área de Concentração Clínica Médica, dando concretude ao seu modo de entender a ministração de ensino e a pesquisa, propôs – em atitude pioneira nacional – e obteve – financiamento pela agência nacional FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos) para o programa Formação de Recursos Humanos, com a ambiência multi e interdisciplinar. A propositura foi feita apenas quatro anos após a formalização da pós-graduação stricto sensu em nosso país, e tido, por aquela agência nacional de financiamento, como de elevado valor pedagógico e científico, compatível e inerente a esse sistema de estudos após a graduação.
Decorridas duas décadas mais, em 1992, aCongregação dessa Unidade aprovou o Plano Diretor[11], com projeção das recomendações até o fim do século XX – de estudos multi e interdisciplinares no conjunto de suas atividades. O plano O Plano Diretor vai além das recomendações: ele aponta e cria áreas prioritárias, tidas como estratégicas, de que Ciências das Imagens e Física Médica e Biomecânica são exemplos da necessária organização multidepartamental e da indispensável interdisciplinaridade.
O que isso tem a ver com o nosso assunto?
Tem tudo a ver como já afirmado nos parágrafos entrantes deste texto. Para melhor entendimento vou fazer breve repasse em dois tópicos.
Da Faculdade de Medicina
A nossa instituição não é um instituto, tampouco é um centro tecnológico. Não pode passar despercebido que ela está submetida à lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Ela é uma Escola: como tal, ela tem a responsabilidade de – com qualidade – formar profissionais competentes para o bom exercício profissional, atrelado aos princípios éticos. Grosso modo, isso representa dizer que – com meios e métodos – a escola transmite o melhor saber já sabido. Mas ela vai além: ela se ocupa – por razões já aqui ressaltadas – da produção de conhecimento inovador, através da pesquisa sistemática e da extensão extramuros deles – o saber já sabido e o conhecimento inovador. Também cabe o destaque de que ela é mais do que uma (outra) escola médica geradora e transmissora do conhecimento de elevada qualidade: ela tem responsabilidade direta na formação cultural do jovem, em harmonia com a formação técnico-científica e profissional.
Em favor da afirmação da FMRP como “escola de investigação” – em grande parte creditada às suas origens, como repassado na apresentação deste texto, deve-se apontar que, apesar de haver ela iniciado as suas atividades em 1952, já em 1955 haviam sido defendidas três teses de doutoramento. Esse número se eleva para 115, no ano 1970, por ocasião da instalação da pós-graduação stricto sensu, quando expira o direito daqueles docentes já inscritos no sistema antigo: foram 149 as teses de doutorado (62 em ciências básicas e 87 em ciências clínicas), naquele sistema.
A meu ver, a grande expansão na investigação – e divulgação – científica é resultado do modelo de pós-graduação stricto sensu, aqui adotado (e zelado para mantê-lo) e cuidado para melhorá-lo. Em sendo uma escola médica, repete-se: ela não é um instituto e nem tampouco um centro tecnológico. Necessariamente ela é uma escola que acolhe desde as ciências sociais até aquelas que têm lastro nas complexas ciências biológicas, e, em qualquer situação  observando o rigor do método científico. Seria ocioso enumerá-las todas, mas, à guisa de exemplos, vale referir-me a elas de modo genérico: o exame das condições sociais das populações; o intercâmbio internacional no ensino em ciências da saúde; as neurociências em associação às ciências das imagens e da física médica; os peptídeos vasoativos; a imunidade celular e a biologia molecular; o transplante de tecidos e órgãos; a oncologia pediátrica; a citotoxicidade no sistema auditivo; as práticas nas doenças da retina; a farmacocinética na gestação e na reprodução assistida; o amplo espectro de patologias causadas pelo Trypanossoma cruzi etc.
Irrespectivo da magnitude das contribuições dadas às ciências sociais, básicas e clínicas, cabe também destaque para a qualidade das práticas médicas clínicas. É uníssona a percepção dos nossos professores de que há vinte anos estávamos “atrás” na assistência médica, comparativamente com outros centros universitários: hoje, não estamos “atrás”, em muitas áreas, estamos “à frente”. Da mesma forma há nítida percepção dos ganhos com as práticas interdisciplinares (internas e externas) em trabalho colaborativo com outras instituições. Esses conjuntos são explicativos do aumento de financiamento externo e das publicações em periódicos de reconhecido padrão de exigência internacional.
Do exemplo de casos ou casos exemplares
Peço vênia ao leitor para dar destaque a duas situações rotuladas por mim como “casos exemplares”, nas quais estive diretamente envolvido ou que me despertaram vivo entusiasmo. Um, o Laboratório Experimental da Clínica Médica, formado nos primórdios da criação dos departamentos clínicos – em consonância com as ideias e ideais de nossa escola médica – conforme apresentado na introdução deste texto. Aquele laboratório experimental – criado por Hélio Lourenço de Oliveira – dava ênfase ao método científico, qualificado, como instrumento para o entendimento da fisiopatologia (modelos animais) de situações clínicas.
O outro – o Laboratório de Hemodinâmica – surge como vontade (e necessidade) da nova instituição em criar laboratório para os fins de diagnóstico e tratamento cirúrgico de patologias do coração: era algo desejado desde cedo e, até então, não concretizado. Com esse propósito ele começou, mas foi muito além como locus de importantes investigações clínicas e experimentais (ambas viriam a configurar modelos).
Descrever o longo percurso – 50 anos – desse laboratório não é meta prioritária deste texto. Mas, no sentido de contribuir para o que se examina aqui – a contribuição à pesquisa nessa escola médica – vale relato ainda que sumário. Se comentário preliminar cabe, ele deve colocar em destaque o fato de que o laboratório foi expandido, mercê da progressiva modernização de seus meios instrumentais em paralelo com a expertise daqueles que nele trabalharam.
A primeira etapa – raison d’être – era a de organizar laboratório para as tarefas de diagnóstico de cardiopatia, para os fins de tratamento cirúrgico (acima referido). Mas como e com o quê fazer? O que o laboratório dispunha de recursos físicos e instrumentais? Em breve resposta: nada (ou quase nada). Com exceção de uso eventual de sala de raios-x convencional e juntada de equipamentos que não eram usados pela instituição. Além de pequenos recursos instrumentais a nós cedidos, por empréstimo, por outras escolas médicas nas quais havia eu estudado.
A posteriori, claro está, nos primeiros anos de seu funcionamento, não será exagero dizer que, àquela época, atravessamos aquilo que em teoria científica chama-se serenpitividade (tradução livre do inglês serenpitivity), i.e., fazer descobertas inesperadas, cujos resultados não eram esperados. Outra interpretação dessa teoria não está no que foi encontrado, mas no fato de que (alguém) os busca. Rigorosamente, entre nós, foi período de dedicação ao desenvolvimento de métodos.
Essa fase – que não exigia grandes recursos instrumentais – é seguida daquela que coincide com a chegada de novos equipamentos, mercê de dotações especiais da Rockfeller Foundation, CNPq, Fapesp e do National Institutes of Health. Essa última fonte, sob a forma de Grant, tinha como objeto específico o estudo da cardiopatia chagásica crônica.
A partir de então, melhor aparelhados, ampliamos o tempo dedicado ao diagnóstico das cardiopatias humanas, mas não deixamos de lado nossas investigações experimentais. O foco principal esteve centrado nos modelos experimentais com destaque para a atuação de polipeptídios vasoativos, incluindo a bradicinina e a eledoisina, a ação de drogas – metaraminol, tiramina e angiotensina – sobre a circulação pulmonar de cães anestesiados e a regulação autonômica do cão em estado de vigília, comparando as respostas com aquelas subsequentes à ação de diferentes agentes anestésicos. Sob meu ponto de
vista, foram estudos representativos de interdisciplinaridade.
Talvez, ou melhor, certamente, a mais longa e profícua atividade nossa é aquela centrada na cardiopatia chagásica crônica. Há que se dar destaque ao trabalho cooperativo com os Departamentos de Patologia, Parasitologia – Microbiologia – Imunologia, e Cirurgia. Como já referido acima, o Grant do National Institutes of Health tinha especificidade na cardiopatia chagásica crônica. O projeto tinha o título Regulation of cardiac output in Chagas’heart disease.
Ao longo dos anos – décadas – essas investigações expandiram-se em número, objetivos e diversidade metodológica conduzidas por professores criativos e muito inteligentes. Foram inúmeras dissertações e teses de doutorado, além de dezenas e dezenas de artigos publicados em periódicos de rigor editorial. Elas se expandiram e permitiram o avanço para a compreensão da fisiologia e da fisiopatologia de ser humano sadio e enfermo.
Seria ocioso – e imperfeito e parcial – tentar mencioná-las todas. Cabem alguns destaques: o exercício físico no treinamento de atletas de grande desempenho e do exercício na reabilitação cardiovascular; o uso de refinada ecocardiografia na avaliação da função ventricular; aplicação da medicina nuclear na identificação de áreas de hipodifusão do miocárdio, correlacionando-as com as arritmias cardíacas (em protocolo de investigação multicêntrico internacional, incluindo a imunologia). Também os modelos experimentais: o estudo da isquemia miocárdica para avaliação de testes de stress; os estudos in vitro para avaliação da viscosidade sanguínea sobre jatos regurgitantes etc.
Conclusão
A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto tem origem em projeto bem fundamentado, configurando um modelo educacional – exógeno – de pretendida elevada qualidade. Ao longo deste texto, usei a expressão modelo. A meu ver, ele é interpretação de uma realidade, o que representa dizer que versão diferente possa existir para a mesma realidade. Daí que incluí o subtítulo – uma visão pessoal – à conferência que tive a honra de proferir.
Entendo que as fases da História – qualquer seja ela – não devem ser arbitrariamente fixadas a partir de uma ou outra personagem (ou muitas), que seja capaz de realizar ou subestimar uma contribuição2. Nada vem do nada, ela é uma construção coletiva que deve ser fundamentada na história documentada. Pela razão supra – a interpretação de modelo – o fator tempo é capaz de mudar essa última. A evolução – digamos, as fases – tem, em geral, ponto de partida bem definido, impregnado de conteúdos ideológicos. Se assim é, no momento de seu início, assim poderá não ser por fatores intervenientes.
Por isso, o objetivo deve ser não o de colocar em relevo (ou depreciar) uma (ou outra) parte de nossa história oral, mas sim a de explicá-la à luz de sua evolução documentada. Parece-me, em nosso caso, que carecemos dela – história documentada – o que favorece o surgimento de figuras míticas que não são explicativas do conjunto de fases. Além do livro de José Eduardo Moura e Arlindo Nogueira3, devo aditar as publicações especiais do quadragésimo[12] e quinquagésimo[13] aniversários de nossa instituição. Se do passado/presente elas se ocupam, sobre o presente/futuro se debruça o nosso Plano Diretor11.
Atendo-me aos propósitos da conferência – contribuição à pesquisa – não há dúvida da pujança de nossa escola médica na gênese e na divulgação das investigações em largo espectro de áreas e subáreas. Essa pujança tem lastro nos indicadores atuais de reconhecimento de mérito científico: publicação em periódicos e livros de reconhecido rigor editorial e capacidade de nossos professores na captação de recursos financeiros externos à universidade. No entanto, não parece subsistir dúvida que a contemporaneidade traz à luz um dilema: a excelência acadêmica carece de definição da universidade, em sentido amplo, de instituições de ensino ou de pesquisa com missões distintas?
Repetindo o acima dito, o nosso Plano Diretor11 – aprovado por unanimidade pela nossa Congregação há cerca de duas décadas – analisou aquela conjuntura e projetou o nosso futuro sempre lastreado nos princípios fundamentais que nortearam a criação dessa escola médica. Inclusive porque ele contém a projeção feita pelos próprios professores acerca das principais áreas carentes de prioridade, para a década subsequente. Pois o futuro – projeto àquela ocasião – chegou. Mas como disse acima, a interpretação de uma realidade pode mudar. Não previsto no Plano Diretor, desde então essa instituição criou cinco cursos de graduação – fisioterapia, fonoaudiologia, informática biomédica, nutrição e metabolismo, e terapia ocupacional – nas áreas da saúde. Essa decisão transformou a “escola médica” em uma “escola das ciências da saúde” que não pode se afastar dos princípios norteadores que deram origem àquela.
The last but not the least pergunto-me, então, com enorme ansiedade
• Em sentido amplo, qual a ideologia hoje dominante na academia?
• Pode ela resistir a uma violenta organização profundamente capitalista?
• Como compatibilizar o dilema universidade de pesquisa versus universidade de ensino à luz da nossa legislação do ensino superior?• Em uma economia de mercado do conhecimento, como lidar com o problema da corrupção acadêmica entrincheirada na universidade e nas disciplinas? • Irá a universidade acentuar ainda mais a ênfase no “conhecimento útil” em mais detrimento dos saberes culturais? • Como romper com a arcaica organização dos departamentos, isolados entre si, e fragmentados em “unidades semiautonômas”? • Como promover a interdisciplinaridade, essencial ao desenvolvimento e à ministração dos novos saberes, deixando para trás a época da transmissão dos saberes já sabidos dissociados uns dos outros? • Como lidar com a criação entre nós de uma “faculdade das ciências da saúde”? • Estão sendo assegurados aos nossos novos cursos nas “ciências da saúde” os critérios de qualidade adotados como princípios norteadores de qualidade do (então) nosso curso médico, quando criado e sustentado? • Pode ser exigido dos atuais professores a atitude semissacerdotal daqueles do passado, aceitação então presuntiva de ganho per se pelo prazer intelectual? • Como obviar a limitação de baixos salários, supostamente compensados com bônus aviltantes e desmoralizantes, incompatíveis com o mérito intrínseco ao exercício da docência em seu sentido amplo? • Devem as instituições de ensino superior deixar transparentes e tornar públicas as exigências do perfil individual implícito para a contratação de professores em regime de regime de tempo integral sem a qual a exigência do indispensável perfil coletivo não será atingido?
• Quais os critérios e normas – na progressão na carreira acadêmica – em instituições com variadas subáreas que englobam desde as ciências sociais até as de grande complexidade tecnológica? • Devem eles estar atrelados à competição pelas verbas oriundas do chamado “mercado”? • A quem interessa os estudos em seu amplo aspecto social?
Nunca será demais repetir: sempre prevaleceu a verdade de cada um, o assim é se lhe parece, de Pirandello.
[i] Conferência ministrada aos 16 de maio de 2012.

[ii] Professor Titular aposentado do Departamento de Clínica Médica, FMRP-USP.

 Referências
[1] Souza Campos, E. História da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1954.
[2] Amorim, D.S. Abraham Flexner. Modelo de educador, a burocracia e a filantropia. Ribeirão Preto;Holos Editora, 2012.
[3] Mauro, J.E.M. & Nogueira, A.R. FMRP-USP, Primeiros tempos, através dos documentos e pela voz de seus construtores. São Paulo; FUNPEC Editora, 2004.
[4] Amorim, D.S. Modelos Educacionais – Tradição, Poder e Tribalismo. Ribeirão Preto;Holos Editora, 2009.
[5] Brasil. Lei nº5540, de 28 de novembro de 1968.
[6] Teixeira, A. Uma perspectiva da Educação Superior no Brasil. R. Bras. Est. Pedag. Rio de Janeiro, 50(111): 21-82, 1968.
[7] Amorim, D.S. The archaic organization of higher education institutions and its effect on the curriculum. R. Bras. Educ. Méd.,Rio de Janeiro, 19(1/3): 12-15, 1995.
[8] Sucupira, N.A. Definição dos Cursos de Pós-graduação. Transcrito de Documento do Conselho Federal de Educação nº44. R.Bras. Est. Pedagog. Rio de Janeiro, 44(100): 415-433, 1965.
[9] Amorim, D.S. Memória Histórica da Pós-Graduação. Medicina (Ribeirão Preto): 38(2) abril-junho, 2005.
[10] Amorim, D.S. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. A criação da Pós-graduação Stricto Sensu: Curso ou Área? Medicina (Ribeirão Preto): 40(1) janeiro-março, 2007.
[11] Universidade de São Paulo. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Plano Diretor, aprovado pela Congregação, em sua 564a Sessão Extraordinária, de 6 de dezembro de 1961.
[12] Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Medicina (Ribeirão Preto) 25(1) janeiro-março 1992.
[13] Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Medicina (Ribeirão Preto) 35(3) janeiro-março 2002.