Homenagem ao Dr. Carneiro – Por: José Aparecido Da Silva*

As mãos do menino sapateiro

“A medicina foi sua esposa legítima, a cirurgia foi sua adorada amante” (Tchekhov)

(Dedicado ao Dr. João José Carneiro, cirurgião das mãos mágicas, In Memorian

Em todo dez de agosto, seu aniversário, meu pai reunia os três filhos ao redor de uma grande mesa, farta de café com leite preparado por minha mãe, assim como, de seus doces bolinhos de chuva, aromatizados com sua brandura e amor, para nos contar algumas estórias da época, visando, com suas parábolas e metáforas, em nós solidificar os valores da vida. Motivo pelo qual, talvez, os versos “Naquela mesa ele sentava sempre, e me dizia sempre o que é viver melhor. Naquela mesa ele contava histórias que, hoje, na memória, eu guardo e sei de cor. Naquela mesa ele juntava gente e contava, contente, o que fez de manhã. E nos seus olhos era tanto brilho que, mais que seu filho, eu fiquei seu fã” me doam tanto… Como ele faz falta… e suas estórias, também…
Uma dessas estórias contada por meu pai ainda me comovem profundamente. Nela, lá pelas bandas de Ituverava, quando cana facilmente virava dinheiro de gringo, ele testemunhou um ocorrido que nunca mais lhe saiu da memória. Era inverno, uma manhã de sábado com brilho de sol que teimava em ficar, quando uma senhora, família de quatrocentos anos da cidade, numa sapataria familiar adentrou, em busca de um par de sapatos que lá havia deixado para reparo. Trabalhando ali, o pai, sapateiro-mestre, a esposa, cuidando da graxa e do brilho, e o filho, ainda menino, miúdo para as grandes e ágeis mãos que tinha, por todos notada, cuidando de aparar os arremates finais. Entretanto, no seio familiar, as tarefas de pai e filho, muitas vezes eram inversas, quando, o filho, vendo o cansaço abater as vistas exaustas do pai, das mãos trêmulas deste tomava as costuras mais delicadas, pedindo para que este apenas cuidasse de as aparar.
Alta, cabelos cor de ouro envelhecido, presos num severo coque, olhos grandes de rapina, a senhora, com voz trovejante, mal cruzou a porta, exigiu o que foi encomendado. Ao receber, porém, o sapato consertado, virando-o várias vezes, aborreceu-se, visivelmente, com o que nele fora efetuado e, entendendo que tal serviço sequer valia os míseros trocados que lhe fora cobrado, atirou-o, violentamente, na face do velho sapateiro-mestre, dizendo, “Um lixo destes você dê aos pobres!”. E, retirando-se da humilde sapataria, entrou em seu carro, nunca mais ali voltando. O sapateiro-mestre, vendo a mágoa em que ficara o filho, responsável pelo conserto, aproximou-se do mesmo e, abraçando-o, consolou-o dizendo “Não se entristeça, a vida judia, mas também ensina. O tempo é senhor da razão”. Nos dias que seguiram, porém, cauteloso e calejado que era, o pai vaticinou ao filho que o mesmo buscasse profissão mais nobre, pois o ofício de sapateiro, muito em breve estaria em extinção.
O menino cresceu. E o tempo, modificando-se cada vez mais, veio a confirmar as palavras do pai. As sapatarias familiares, aos poucos, foram sendo substituídas por pequenas fábricas e os sapatos, substituídos por outros, cada vez mais descartáveis. Nessa época, o menino, miúdo para as grandes e ágeis mãos, era, agora, um jovem médico, de plantão no hospital da cidade. Era inverno, uma manhã de sábado com brilho de sol que teimava em ficar, quando uma senhora, bem idosa, de família de quatrocentos anos da cidade, ali adentrou, em desespero, em busca de socorro para sua única neta, que morria. A cardiopatia congênita que acometia a menina era a mesma que, anos antes, levara sua mãe, filha da velha senhora, fato que, talvez, justificasse seu desespero: se perdesse a pequena, a perda seria dupla.
Os atendentes, mais que de imediato, prestaram os primeiros socorros à menina, tranquilizando a avó ao dizerem que um habilidoso cardiologista, conhecido pelas mãos grandes, hábeis e milagrosas, estava de plantão naquele dia. Sua neta estaria, portanto, em mãos seguras. De fato, o jovem cardiologista, brilhante que era, imediatamente a menina socorreu, realizando, com sucesso, os procedimentos cirúrgicos necessários. Vida salva, eis que, horas mais tarde, vem o mesmo ao saguão do hospital dar a notícia aos familiares.
Alta, mas já curvada pelos anos, cabelos cor de ouro, agora embranquecidos, lá estavam o severo coque, os olhos grandes de rapina e a voz trovejante daquela sua velha conhecida que, em manhã similar, tantos anos atrás, adentrara, agressiva, à sapataria de seu falecido pai. Ao saber salva a neta, agradecimento esquecido, eis que a velha senhora, sacando o talão de cheques, imediatamente menciona ao cirurgião sua prontidão em pagar seus honorários. Perplexo, o cirurgião afasta-se da mesma e, aguardando que ela erga os olhos ao ouvir sua recusa, assim lhe diz, “Faça outro o uso de seu dinheiro. Aqui é um hospital público e salvar vidas é nossa obrigação e juramento”. Mas a senhora, inconformada com sua recusa, chega a destacar uma folha, pedindo-lhe para preenchê-la com o seu preço.
Diante de todos, mais perplexos que o próprio médico com a arrogância afrontosa da velha senhora, aquelas mãos grandes e hábeis, rasgaram, vigorosamente o que lhe era ofertado. Os olhos de rapina, então arregalados, reconhecem a quem pertenciam aquelas grandes mãos. Com dificuldade, e respirando pesadamente, indaga, “A quem devo, então, agradecer?”. “Faça uma oração ao meu velho pai, que me ensinou o ofício de sapateiro que, um dia, a senhora, renegou”.

Amigo “de coração” e “do coração” do Dr. Carneiro

*Prof. Dr. José Aparecido Da Silva, Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) – Foto: Arquivo Revide